O protagonismo político da deputada Ana Lúcia

Afonso Nascimento – Professor de Direito

Ana Lúcia Vieira de Meneses (ou Ana Lúcia tout court) é um dos nomes mais importantes da classe política sergipana de todos os tempos, daqueles que inspiram respeito da parte de aliados e adversários. Ela obteve quatro mandatos de deputada estadual, entre 2002 e 2018, após o que se retirou da política partidária para cuidar de sua saúde. Ana Lúcia é uma mulher branca de classe média alta em termos de origem social. Dito de outra forma, nasceu no seio da elite social sergipana – o que não é nenhum crime. Todavia, escolheu para si uma profissão muito desvalorizada socialmente: o magistério não universitário. Ela se graduou em meados dos anos 70 do século passado e era percebida por seus críticos como “dondoca” ou “patricinha”.

Antes de avançar mais, preciso abrir um parêntesis aqui. Na produção desse texto sobre a ex-deputada Ana Lúcia, eu entrevistei cerca de dez pessoas. Os seus nomes não serão aqui registrados porque elas me pediram para ficar no anonimato. Todas! Todo o mundo com muito cuidado. Em princípio, a professora Ana Lúcia mostrou interesse em me conceder uma entrevista, mudando de ideia depois. Eu decidi seguir com esse projeto de escrever sobre ela mesmo assim e comigo carregando toda a responsabilidade sobre o teor desse artigo.
A vida profissional de Ana Lúcia começou assim que ingressou no curso de Pedagogia da UFS. Com efeito, suas conexões familiares a levaram a trabalhar ainda como estudante na Escola Normal, depois sendo transferida para a Secretaria de Estado da Educação em seguida, ali ocupando a função de técnica. Nessa condição fez concurso para a rede estadual de ensino e teve a chance de ser professora na Farolândia por brevíssimo período. Os cargos comissionados que Ana Lúcia ocupou foram todos durante governos de interventores estaduais do regime militar.

A literatura especializada aponta os sindicatos como celeiros de futuros membros da classe política. Ana Lúcia se filiou à Associação Profissional do Magistério do Estado de Sergipe (APMESE), o sindicato que precedeu ao Sindicato dos Trabalhadores do Estado de Sergipe (SINTESE), provavelmente após fazer o seu concurso público para a rede estadual de ensino. Entre os anos de 1986 e 1992, ele participou de um grupo de pressão composto de intelectuais e militantes políticos de esquerda (Ana Lúcia Vieira de Meneses, Alexandrina Luz, Ruy Belém de Araujo,Diomedes Santos da Silva, Gildete Cardoso, Sônia Maria Santos, entre outros) chamado Centro dos Profissionais de Ensino de Sergipe (CEPES). É mais que provável que sua conversão à esquerda política tenha ocorrido nesse período. Esse grupo de petistas era realmente combativo e queria tomar pela via eleitoral a direção da APMESE. Na eleição de 1992, o grupo disputou e ganhou a eleição contra o PCdoB e o PCB. Foi então que a sua estrela de sindicalista subiu e ela, como membro do SINTESE, preparou-se para entrar na política partidária.

Ana Lúcia foi presidente do SINTESE por duas vezes, de acordo com o estatuto da instituição sindical. Porém, isso não impedia que ela ocupasse outros cargos de direção sem estar à frente de sua presidência. O SINTESE era e é um sindicato de funcionários públicos. A APMESE era considerada uma associação ligada ao velho sindicalismo assistencialista e clientelista, ao passo que o SINTESE representava o novo sindicalismo surgido com as greves do ABC paulista comandadas como Luiz Ignácio Lula da Silva. Em 1992, o SINTESE, quando passa a ser  controlado pelo grupo de Ana Lúcia, possuía três mil filiados, chegando hoje a ter em seus quadros 26 mil membros, com presença em todos os municípios sergipanos, menos em Aracaju.  Além de poderoso (os secretários de Educação que o digam!) e bem estruturado, o SÍNTESE é um sindicato “rico” que cobra 1% dos salários de seus filiados mensalmente!

À frente de seu sindicato, até hoje com predominância feminina, Ana Lúcia coordenou o trabalho para aumentar as subsedes do sindicato pelos interiores sergipanos, comandou greves, participou de passeatas, representou o sindicato em audiências com autoridades, redigiu documentos, dirigiu assembleias, participou de debates, fez muitos discursos, viajou por por todos municípios sergipanos, realizou congressos, e fez até uma greve de fome, durante governo de João Alves Filho, para exigir a aprovação do Estatuto do Magistério Público Estadual! Um ato simbolicamente muito forte, que mostra uma pessoa disposta a morrer em uma greve na defesa de sua categoria de professores! Com esse gesto, a liderança e o prestígio de Ana Lúcia só fizeram aumentar!

Em 2002, Ana Lúcia se candidatou a deputada estadual e foi eleita. Há quem diga que o seu sucesso eleitoral esteve diretamente ligado à sua greve de fome – o que faz todo o sentido. Ao tornar-se deputada estadual por quatro vezes, parece ter havido a fusão da liderança sindical com a de deputada estadual. Tornou-se impossível separar as duas militâncias políticas. Ela, que já era uma liderança sindical, passou a ser uma liderança política corporativista, posto que a maioria de seus votos virá da clientela que era o quadro docente estadual, ainda hoje, mas nem tanto como antes, majoritariamente composto por mulheres como ela. Alguns analistas políticos passaram a dizer que só a candidata do SINTESE podia ser eleita sem precisar do voto de mais ninguém. Um exagero? Parece que sim, pois na trajetória política de Ana Lúcia é possível observar o apelo da deputada estadual a diversos movimentos sociais como quilombolas, sem-tetos e outros, alargando a sua base eleitoral. É baseada nisso, aliás, que Ana Lúcia chama seu mandato de democrático e popular.

Infelizmente, não tive acesso aos seus discursos, aos  seus registros dos seus votos, aos seus pareceres e aos seus projetos de lei, aprovados ou não, no Plenário e nas Comissões Parlamentares da Assembleia Legislativa para fazer um melhor retrato de seu desempenho e de sua participação como parlamentar que fazia se respeitar e era respeitada por seus adversários e pelos faziam a cobertura do parlamento estadual. Alguns dizem que era uma mulher de diálogo, outros falam que ela era mais adepta ao confronto. Uma coisa, porém, é certa. Tendo o PT tido historicamente quase sempre dois deputados estaduais e estando quase sempre na oposição, isso tornou possível observar uma certa homogeneidade nos posicionamentos políticos de Ana Lúcia. Foi líder do PT na Assembleia Legislativa em 2003.

Há uma coisa que me intriga na trajetória de Ana Lúcia. Ela acha que a marca principal de sua vida política é a “coerência”. Por que coerência? Que sentido ela dá ao conceito de coerência? Fidelidade a princípios e a práticas políticas? Se disser que sempre esteve na esquerda, tem o problema do período em que ela não tinha se engajado nas lutas populares e dos professores. No tempo em que ela se converteu à esquerda, Ana Lúcia esteve em pelo menos duas facções do PT (Articulação e Opção de Esquerda), nas suas eleições a maioria dos seus eleitores era clientela do seu sindicato, nos governos petistas na prefeitura e na governadoria teve uma fatia de cargos colocados à sua disposição, posicionou-se contra a avaliação dos professores, foi contra o Projeto de Qualificação Docente (PQD) que envolveu o SINTESE, a UFS e a SEED, e exagerou na oposição que fez ao governador Marcelo Déda, promovendo o seu enterro simbólico e chamando-o de “fascista”. Politicamente, Ana Lúcia estava à esquerda do moderado ex-governador.

Em adição às suas atividades como parlamentar, Ana Lúcia exerceu dois cargos na alta administração da prefeitura e da governadoria estadual. Mais precisamente, foi secretária de Educação no primeiro mandato de Marcelo Déda como prefeito. Não realizou nenhum trabalho que mereça destaque, cedendo espaço para um membro do seu grupo, o professor Ruy Belém de Araújo. A sua passagem pela Secretaria de Assistência Social, agora no governo estadual de Marcelo Déda, também não chamou a atenção como administradora. Do mesmo modo que o próprio Marcelo Déda, Ana Lúcia pareceu mais “vocacionada” para o trabalho de parlamentar do que para o de gestora.

Ana Lúcia se retirou da política em 2018 e não deixou nenhum familiar como herdeiro. Com efeito, seu marido foi dirigente do sindicato dos médicos e perdeu, enquanto petista, duas eleições para a prefeitura de Riachuelo. Os seus dois filhos, salvo engano, não quiseram se envolver na política. Malgrado isso, ela encontrou no atual deputado estadual Iran Barbosa o seu herdeiro, informação deixada clara em documento escrito por ela em 2018.

Pode ter acontecido de forma diferente, mas o anúncio de sua retirada da política parece ter provocado uma fratura no sindicato controlado há décadas por ela e seu grupo. Na sua última eleição do sindicato, um grupo dissidente passou a controlá-lo. Declínio de sua liderança? É muito possível. Parece estar acontecendo nesses tempos coisa parecida à circulação do grupo do poder no sindicato como quando ela defenestrou Hamilton Santana em 1992. Colocando Ana Lúcia no quadro geral da política sergipana, ela está muito acima da média de mulheres e homens políticos em termos da política bem qualificada que gerou para si. A sua ausência já faz muita falta nas luta classes e dos movimentos populares, dentro e fora do Parlamento estadual.

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