O direito brasileiro nasceu na casa grande

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Os historiadores do direito brasileiro padecem de um grave problema: o formalismo. Com efeito, como entendem o direito como norma escrita, tendem a tomar como ponto de partida para pensar o direito brasileiro as ordenações reais de Portugal – o país que invadiu o que será mais tarde chamado de Brasil. Através desse raciocínio as leis portuguesas do século XVI ao século XIX são, para eles,as principais fontes para a elaboração de uma história do direito brasileiro. Se alguém tem interesse em um enfoque mais perto da realidade histórica do país, precisa abandonar essa ideia de transplantação do ordenamento jurídico português, mesmo que seja parcialmente.

Darcy Ribeiro, um dos maiores antropólogos brasileiros, escreveu livro em que afirmava que as sociedades latino-americanas como sendo de dois tipos: as sociedades transplantadas (Argentina, por exemplo) e as sociedades misturadas (como o Brasil e muitas outras). Do segundo tipo nasceu uma sociedade nova, mediante a mistura de populações etnicamente diferentes. Ele estava certo, mas, depois de nós conhecermos um bom número das sociedades das américas, nós retiraríamos o absoluto do conceito de transplantação cultural. De qualquer forma esse conceito é útil para a nossa reflexão.

Pensando na história do direito brasileiro, isso não quer dizer que o nosso direito seja o resultado cultural do discurso da mistura das três raças. As culturas jurídicas dos brasileiros nativos e dos imigrantes forçados (escravos e seus descendentes) não tiveram qualquer importância na construção do direito brasileiro. De fato, as culturas jurídicas dessas populações foram completamente esmagadas pela sua transformação em classes trabalhadoras escravas. Surgiu então, entre nós, um direito escravista, que persistiu até o fim do século XIX.

Esse direito nasceu na casa-grande. Por que assim? Porque a casa-grande era o espaço onde residiam os grandes proprietários da terra e dos escravos. Em todo esse período, o poder jurídico tinha a cara desses proprietários. O direito nasceu da propriedade privada da terra e dos homens, das mulheres e das crianças. E o que dizer das leis e dos tribunais portugueses? Eles tinham pouca utilidade, uma vez que só podiam ser aplicados aos homens livres, que eram uma minoria na sociedade escravista brasileira.

Eram os proprietários de terras e de escravos que faziam, interpretavam e aplicavam as suas próprias leis. Em seus domínios patrimoniais eram incontestáveis. A sua dominação jurídica se aproximava do despotismo jurídico carregado de muito casuísmo, mas tinha uma certa racionalidade. Os proprietários possuíam o “direito” de vida e morte sobre seus escravos, o que não significava que mandassem matar esses trabalhadores por qualquer coisa, posto que sabiam que eles eram uma “mercadoria” que tinha um certo valor monetário. A não ser que fossem trabalhadores que estiveram por mais de quinze anos labutando no eito e não possuíam mais serventia para o trabalho.

Nesse tipo de sociedade escravista predominava, claro, o direito penal. Os escravos não eram sujeitos de direito para poder entreter relações baseadas em leis civis com quem quer seja – embora sempre houvesse certa exceções –, privilégios dos homens livres. Desse modo, quando tem lugar o fim do trabalho escravo em 1888, formalmente, toda a população brasileira, de ex-escravos, descendentes de escravos e descendentes de homens livres, transforma-se numa população de homens livres e, nessa condição, sujeitos de direito com vontade própria, admitindo que os escravos supostamente não tivessem essa vontade.

Os proprietários de terras e de escravos, já o dissemos, podiam ser eles próprios os aplicadores de sua própria lei, além de criá-las e interpretá-las. Era umacommon-law escravista, um tipo de direito costumeiro, com elementos de irracionalidade já mencionados. A população de feitores formava um verdadeiro quadro de especialistas na aplicação da lei penal dos proprietários no Brasil inteiro, a serviços dos seus patrões. Reinava uma espécie de regra de “vigiar e punir”.

Os conjuntos habitacionais dos escravos eram as senzalas que, mais tarde na história, serão transformadas em favelas rurais e urbanas. Fossem os locais de trabalho plantations, garimpos e outros mais, as escravarias, grandes ou pequenas, eles correspondiam, de certa forma, a campos de concentração – o que mostra que esses espaços de trabalho não são invenções dos nazistas ou dos comunistas. Vivendo e se reproduzindo nesses espaços, os trabalhadores escravos desconheciam qualquer tipo de mobilidade espacial, a não ser aquela permitida por seus proprietários, por exemplo, no comércio provincial e interprovincial de escravos.

Por mais de três séculos o trabalho escravo não foi considerado crime no Brasil. Com o fim da escravidão, a situação mudou e ela passou a ser tratada como conduta criminosa.Nesse começo do século atual lemos com frequência notícias de casos análogos ao trabalho escravo no país. Os casos relatados não permitem dizer que se trata de um novo sistema econômico escravista. Longe disso. Predomina o trabalho livre e assalariado – a despeito de existir bancadas congressuais contrárias a um maior rigor no tratamento penal dado aos novos escravocratas. A sociedade sergipana não tem estado desconecta dessa “onda”.

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