O Bar de “Burguesia”

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Burguesia foi o apelido que colou em Gilberto Teles Menezes, um comunista sergipano que faleceu na primeira metade dos anos 1990. Fazia parte do grupo de comunistas nascidos na classe trabalhadora, no período anterior ao golpe militar de 1964. Como esse apelido pegou nele se ele era integrante das classes populares sergipanas? Segundo seu filho Edilberto Menezes, seu pai era um conhecido comunista que, sempre que passava pela rua João Pessoa na década de 1960, um grupo de pessoas o chamava “comunista”, o que a isso ele respondia rotulando àquela gente que sabia que ele tinha sido preso de “burguesia”. O tempo passou e os provocadores terminaram por achar mais engraçado apelidá-lo de “burguesia”, rótulo que nunca mais se descolou dele.

Burguesia tinha baixíssima escolaridade. Não conseguira concluir o primário. Ainda assim, teria desenvolvido o hábito da leitura. Aparentemente, conhecia bastante da literatura brasileira e mundial. O seu nascimento ocorreu em São Cristóvão em 1919 ou 1920. Sua esposa era dona de casa e funcionária pública e não punha restrições à sua militância política clandestina. Os amigos de seu marido sempre eram bem-vindos em sua cas.

Teve três filhos, os quais teriam se integrado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), não por influência do pai, mas através de comunistas que eles conheceram. Agamenon Araújo foi, por exemplo, quem levou Edilberto à Juventude Comunista local, o qual, por sua vez, tinha sido iniciado por Wellington Mangueira. Isso deve ser verdade, porém já havia uma predisposição familiar a um eventual pertencimento ao “partidão”.

Burguesia, ainda muito jovem, mudou-se para Aracaju, cidade em que ocupou diversos empregos como trabalhador não qualificado. Durante o governo de Leandro Maciel, por obra desse político udenista, tornou-se funcionário público estadual, trabalhando como porteiro num entreposto em que o algodão era guardado antes de seu embarque para exportação no porto de Aracaju. Nesse emprego público sem concurso, coisa mais do que comum naqueles tempos, ficou até o golpe militar de 1964, quando foi aposentado pelos militares, dessa aposentadoria resultando uma pequena pensão. Mais tarde, foi contratado pelo Instituto Brasileiro do Café (IBC), numa ocupação igualmente precária.

Engajou-se no “partidão” entre os anos 1930 e 1940. Conheceu a prisão diversas vezes. Participou da manifestação popular que, 1948, protestou contra a ilegalização do PCB durante o governo do general Dutra e da qual resultou a morte do operário Anísio Dário. As suas principais prisões ocorreram, primeiro, em 1952, quando teve lugar o desmantelamento de todos os aparelhos do PCB em Sergipe. Foi interrogado mas não foi torturado. Com o golpe de 1964, Burguesia foi preso novamente e por duas vezes. Num primeiro momento, escondeu-se em casas de parentes e de amigos, depois decidindo voltar para casa e esperar que militares viessem buscá-lo.

E eles de fato chegaram num jipe ocupado por um sargento e dois soldados e dirigiram a viatura com outro passageiro para o quartel do 28 BC. Após a sua partida, a sua mulher se encarregou de fazer uma grande fogueira com todos os seus livros e materiais partidários comprometedores – já que aqueles que prenderam seu marido não fizeram uma varredura na casa. Nessa primeira prisão ficou pouco tempo no quartel. Na segunda vez, o seu encarceramento foi mais demorado, lá permanecendo cerca de sessenta dias. Durante esse período, sua mulher e seus três filhos iam visitá-lo no improvisado xadrez militar. O que os militares queriam saber dele? O habitual “quem é quem” entre os presos, isso também valendo para ele. Uma vez mais não foi torturado.

Ele teve então a oportunidade de dizer aos seus interrogadores que sua ocupação no “partidão” era de arrecadador de fundos para financiar as atividades do PCB em Sergipe. Para cumprir essa tarefa, mensalmente, visitava casas e mais casas de membros e simpatizantes da organização clandestina em Aracaju, recolhendo contribuições. Depois dessa última prisão, as suas atividades como militante parecem ter diminuído, disso sendo um indicador o fato de não ter sido preso em 1976. Mesmo assim, continuou a fazer parte do grupo de velhos camaradas.

Foi através de um desses antigos companheiros que, na primeira metade dos anos 1970, foi convidado para assumir a direção de um bar que tinha sido montado na praia de Atalaia, ao lado direito do que é hoje um restaurante de uma rede de fast-food norte-americana (e que fora antes lugar dos restaurantes O Vaqueiro e de O Tropeiro, respectivamente). Esse bar tinha administrado antes por alguém de nome Carrinho, mas não dera certo. A ideia do bar tinha sido de Marcélio Bonfim, um alto escalão do PCB.

Recorrendo à nossa memória, o bar era bem simples, não possuía nada demais: tinha mesinhas e bancos ordinários, servia caranguejo cozido com água do mar, pedacinhos de carne do sol, caipirinha, cuba libre (um drinque muito popular que misturava Coca-Cola, rum Montilla, rodela de limão e gelo), etc. Não se sabe como, mas, de repente, o bar de Burguesia se tornou o local mais procurado da Atalaia por estudantes universitários, professores, jornalistas, políticos e candidatos a futuros políticos, etc. Era tão grande a sua procura que, não cabendo tanta gente no espaço interior do bar, as pessoas ficavam do lado de fora encostadas nos carros estacionados em frente ao estabelecimento, em altos papos que varavam a madrugada.

O bar de Burguesia teria sido pensado supostamente para ser uma “célula” do PCB. Se foi, é difícil de afirmar. Policiais federais também rondavam o bar da moda, mas nunca houve incidentes. Naqueles tempos de começo de abertura política do regime militar, o bar do velho comunista ficou famoso especialmente por um drinque que era servido, ou seja, uma caipirinha com vodca que algum estudante universitário resolveu chamar de Kepler, o nome de um físico polonês que nada tinha a ver com nada, a não ser talvez o fato de a Polônia comunista pertencer ao Pacto de Varsóvia e que a vodca ser a aguardente mais tomada nos países do Leste Europeu naquela época e ainda hoje.

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