Meu nome é ninguém

Clóvis Barbosa

Uma música, um filme. A música, um samba-canção, mais para o bolerão. O filme, um bangue-bangue, numa mistura de spaghetti italiano e comédia. A música é brasileira; o filme é francês, italiano e alemão. A música é de Haroldo Barbosa e Luiz Reis; o filme de Sérgio Leone e Tonino Valerii. Miltinho e Altemar Dutra foram os grandes intérpretes da música. Henry Fonda e Terence Hill os foram no filme. A música dura 3 a 4 minutos e é de 1962; o filme, 111 minutos, é de 1973. A música trata do encontro entre dois amantes, considerados “ninguém”, que se transformam em “alguém” e, depois do desencontro, voltaram a se sentirem como “ninguém”, pelo menos um deles. O filme fala de um jovem pistoleiro de nome “Ninguém”, que é fã de um velho bandido conhecido como o Rei do Gatilho, cujo nome é Jack Beauregard e está se aposentando. Desapontado com a atitude do seu ídolo, “Ninguém” resolve preparar uma cilada com os piores bandoleiros do Oeste. Ele quer ver, pela última vez, antes do descanso, a atuação do seu ícone. A música tem a seguinte letra: Foi assim / A lâmpada apagou / A vista escureceu / Um beijo então se deu / E veio a ânsia louca / Incontida do amor / E depois / Daquele beijo então / Foi tanto querer bem / Alguém dizendo a alguém / Meu bem, só meu, meu bem / Nosso céu onde estrelas cantavam / De repente ficou mudo / Foi-se o encanto de tudo / Quem sou eu, quem é você / Foi assim / E só Deus sabe quem / Deixou de querer bem / Não somos mais alguém / O meu nome é ninguém / E o teu nome também, ninguém. É claro que, em tese, tanto o conteúdo da música quanto do filme é tido como mera ficção. Ambos, na verdade, tratam de uma história de amor, seja pelos sentimentos de carinho, admiração e de afeto a um ídolo, seja por um amor cujos laços de desejo, durante a sua trajetória, foram rompidos.

Maquiavel, em “O Príncipe”, no capítulo XVII, diz que os homens são geralmente ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ávidos de lucro e, enquanto lhes fizeres bem, todos estão contigo, oferecem-lhe sangue, bens, vida, filhos, desde que a necessidade esteja longe deles. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte e passam a cuspir no prato que sempre lhes encheu a barriga. Em política, por exemplo, é onde a perversidade das paixões humanas mais se manifesta, até porque a história possui um ciclo repetitivo de ordem para desordem e depois ordem, e assim sucessivamente. Não está entendendo patavina de nada? Lembre-se que estou falando de “ninguém”, um pronome indefinido e invariável, que significa nada e em outros momentos todos. Como? Nada quando você fala, por exemplo, em “terra de ninguém”, que é aquele espaço existente entre as trincheiras de duas forças beligerantes, ou seja, um lugar neutro. Na Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, o termo foi muito usado, assim como durante a Guerra Fria, mais precisamente na área próxima à Cortina de Ferro, cuja zona, apesar de pertencer ao bloco do leste europeu, aliado da União Soviética, era uma área inabitada, sem qualquer atenção dos países ali situados. E quando “ninguém” é tudo e todos? Quando você diz que “ninguém quer colaborar com você”, “ninguém é feliz”, “ninguém viajou”, “ninguém sabe o duro que dei”, “ninguém explica Deus”, “ninguém te ama como eu” e até “ninguém é melhor que ninguém”. “Ninguém”, explicam os dicionários, é substantivo masculino e pronome indefinido, conceituado como pessoa excluída do convívio social. Tem como sinônimo as palavras “desqualificado”, “desimportante”, “desclassificado”, etc. Ademais, “ninguém” é o contrário de “alguém” que, diferentemente, é pessoa merecedora de respeito e consideração. Veja o exemplo dos criminosos, não os impetuosos, ocasionais, habituais e fronteiriços, mas os loucos que cometem crimes com instinto de perversidade. “Ninguém”, às vezes, é utilizado como justificativa para prática do crime.

É o caso de Won, um chinês natural de Hong Kong, esquizofrênico, que cometeu um bárbaro crime numa casa do bairro Itaim Bibi e abalou a capital paulista na época. Ele era um jovem de 23 anos quando matou o próprio pai – a quem chamava de “ninguém” – no dia 9 de fevereiro de 1978, a pancada, e, após enfiar um fio no olho do genitor, decepou-lhe a cabeça. Inquirido sobre o ato insano cometido, relatou: “Certa vez assisti um filme que me deixou muito impressionado. Não sei bem, mas parece que era uma organização que pegava os inteligentes e fortes e matava. Matava enfiando dois ferros nos lados da cabeça. Aí comecei a pensar que meu pai era personagem do filme. A televisão faz a gente desconfiar muito, pelo pensamento, e então fiquei muito desconfiado. Eu pensei que o meu pai ia me matar e aí eu matei ele. Pensei que ele era outra pessoa e matei do jeito que vi na televisão”. Ao ser indagado para falar sobre os detalhes do crime, disse: “Não gosto de falar sobre isso, acho que esqueci. Meu pai estava me perseguindo há muito tempo, me assustava, e era bravo comigo. Mas tudo isso não tem importância. Agora não tem mais ’ninguém’ que me persegue”. O interessante é que em dado momento do seu depoimento, ele afirmou: “Não consegui gostar de ‘ninguém’, e nunca tive relação com mulheres. Tenho medo de doenças, que as pessoas falam. Acho que só depois dos 25 anos”. Won, segundo consta do exame psíquico, sofria da chamada esquizofrenia paranóide, que é caracterizada pelas alucinações auditivas e delírios. A mania de perseguição impulsiona esses indivíduos a cometer os mais bárbaros crimes. Vejamos outro caso ligado a “ninguém” ocorrido por volta de 2011 no pequeno município de Quarai, Rio Grande do Sul. A 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça daquele Estado confirmou a sentença de absolvição decretada em favor de um homem acusado de manter relações sexuais com uma menor de 12 anos de idade.

Na sua decisão, a desembargadora Naele Ochoa Piazzeta, embora considerasse a conduta do réu típica na forma da Lei que criou a figura do “estupro de vulnerável”, ou seja, quando a relação sexual é mantida com menor de 14 anos, afirmou que o conceito de vulnerabilidade não pode ser entendido de forma absoluta, simplesmente levando-se em conta o critério etário, o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva. Este deve ser mensurado em cada situação trazida à apreciação do Poder Judiciário, considerando as particularidades do caso concreto. A prova, segundo a magistrada, demonstrou que as relações sexuais aconteceram de forma voluntária, consentida e fruto de aliança afetiva; que a menor não era mais virgem e já contava com certa experiência sexual; que em nenhum momento houve violência ou grave ameaça à vítima; e, por fim, que as condutas sexuais do réu não se amoldavam a nenhuma previsão típica e, por isso, deveria ser absolvido. O curioso, nesse caso, é que num depoimento da Conselheira Tutelar que atendeu o caso, ela confirmou que a menina se encontrava de espontânea vontade com o rapaz, que era rebelde e que se envolvia com meninos desde os 11 anos de idade. Em síntese, era uma menina ‘‘largada’’, uma “ninguém”, que fugia da residência da mãe para se refugiar em outras casas. Mais duas notícias que envolvem o Brasil e que “ninguém” deu importância: a primeira é a de que nos anos de 2006 a 2012 os brasileiros invadiram Miami e compravam de tudo, principalmente imóveis, cujos preços são bem inferiores aos praticados no Brasil e com muito mais qualidade. Não, não, na época, a notícia não foi dada por algum portal petista, mas pelo New York Times que, aliás, também disse que o Canadá era o país que mandava mais gente para a Flórida, mas gastava muito menos em relação aos brasileiros, considerados pelo jornal como perdulários. Mas ninguém relevou essas duas manchetes.

De mim, Miami pode ficar tranquila que ali não vou nunca. Primeiro porque não tenho tanto dinheiro para gastar e comprar bens; segundo porque, por uma questão de princípios, enquanto existir a exigência humilhante do visto para ali entrar, naquela terra não piso. Voltando ao tema: “Ninguém”, no filme, embora jovem, era um tremendo cara de pau. Basta ver a película para verificar o que ele fez para concretizar o duelo final onde o seu ídolo da infância teria o último e definitivo ato no mundo da pistolagem antes de se aposentar. Na música, só Deus sabe quem deixou de querer bem. Quem? Claro que não foi Ninguém, pois ele voltou a ser o que era. Lembram-se do que eu disse no início: a ordem sucede a desordem e esta se transforma numa nova ordem. Enfim, cada um é único, ninguém é de ninguém. E ninguém é perfeito.

Clóvis Barbosa escreve aos sábados, quinzenalmente.

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