Um homem de pouca fé

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Desde o momento em que recebi o diagnóstico médico informando que tinha doença neuro-degenerativa, um medo irracional de morrer se tornou um sentimento desnecessário na minha vida.  Lá se vão pouco mais de vinte anos dessa convivência indesejável, sendo mais forte nos primeiros tempos e agora quase nada importando. É que eu não estava preparado para morrer. Na verdade, quem está? Mas há casos de indivíduos que querem ir embora. Eu conheci uma pessoa que pedia a Deus todos os dias para levá-la. Estou falando de minha avó materna, a querida dona Caçula, depois de ter vivido uma vida longa e no fim acometida de uma cegueira. Diferentemente de minha avó, eu não estava e ainda não estou partir dessa minha única vida. Tenho ainda muitas viagens para fazer e muitos outros projetos para realizar.

Tempos depois de ficar ciente daquele meu problema de saúde, um casal de grandes amigos meus, ele Zé Maria e ela Adelci, me convidou para ir a um centro espírita. Lá ouvi uma rápida palestra Jácome Góes e na sequência me levaram a uma sala escura para falar com alguém. Nada aconteceu. Em outra ocasião, os dois me levaram para tomar de mar de manhã, bem cedinho. Dessa vez me recusei a entrar nas águas da praia de Aruana. Certo dia, o professor da UFS Zé Maria e sua esposa Adelci apareceram com uma ideia nova! Queriam que eu fosse com eles a um povoado de Lagarto onde morava e atendia enfermos um senhor chamado de João Véio. Ainda hoje não sei como chamá-lo. Talvez um pai de santo ou algum sacerdote. Pouco importa. Era alguém ligado a uma dessas religiões de matriz africana que a gente procura quando tem um problema de saúde e acha que a medicina ocidental não dá jeito. Então você busca a cura junto a essas pessoas e a esses cultos na esperança de ganhar uma sobrevida ou mesmo uma “vida nova”. Pois bem, numa manhã de domingo, pegamos a estrada em direção a Lagarto.

Naquele tempo, fins dos anos 90 do século passado, eu já usava uma bengala. Como era um dia ensolarado, pus os meus óculos de sol. No momento em que pusemos os pés na calçada de barro de seu bem modesto casebre, João Véio já sabendo que eu era o paciente, disparou a frase: “Então, você tá com problema na vista!”. Eu, homem de pouca fé, pensei mas nada falei que ele tinha pisado na bola. Depois disso, houve alguma conversa entre nós quatro e eu fui em seguida levado a uma pequena sala com chão também de barro com muitas imagens talvez, velas queimando e João Véio me convidou para sentar em algo que pode ter sido um banquinho de madeira. Em frente de mim, ele também se sentou.

Aí ele tomou um monte de velas brancas e não usadas e, como aquele jogo de varetas, pôs as velas em posição vertical e abriu a mão. Você pode imaginar o que aconteceu. As velas caíram em várias direções, naturalmente. João Véio olhou pra mim e disse: “Meu amigo, sua vida está muito bagunçada!” De novo pensei sem falar: “Que vida não estaria bagunçada se submetida a esse teste”, me perguntei sem dizer nada. A essa altura do campeonato, já desconfiava que a minha consulta com João Véio não traria nenhum alívio para o meu problema. Esperei para saber o que viria pela frente.

João Véio, com ar grave, olhou pra mim e disse: “Isso é coisa de mulher!”. Por essa eu não esperava. O meu sacerdote e médico repetiu a frase parecendo saber das coisas. Eu fiquei sem saber o que dizer. Então ele tentou me ajudar, me pedindo para eu lembrar de alguma mulher ou namorada. Fiz o esforço e só me vinha à cabeça uma professora morena da Faculdade de Direito da UFS, que andava por terreiros de Aracaju e de Laranjeiras. Eu sabia que ela era uma cobra venenosa fugida de algum serpentário, mas não conseguia admitir que alguém tivesse poderes para provocar uma lesão viral na minha coluna cervical. Como eu balancei a cabeça dando a entender que sabia quem era, João Véio me disse que nós iríamos até um riacho próximo de sua morada e lá eu poria naquele córrego algo que não lembro bem. Talvez uma oferenda de plantas ou flores. Fiz isso e, seguindo as suas instruções, me dirigi a sua casa “sem olhar para trás”.

Achei interessante essa parte. Entendi que aquilo era um “despacho”. “Um descarrego”. Quem bom! João Véio tinha afastado de mim o mal contratado por aquela mulher a um outro sacerdote. Na minha ignorância religiosa, acho até hoje interessante nas religiões de matriz africana isso de os seus deuses poderem ser invocados para o bem e para o mal. Como os deuses dos antigos gregos.

Aí chegamos à parte final de minha consulta. João Véio pediu para eu comprar duas garrafas de vinho branco e dentro delas colocar as ervas que ele recomendava. Tentei entender porque esse tipo de vinho e ele não me deu uma resposta, mas me disse o que fazer com as garrafas: eu deveria cavar no meu quintal um buraco, pôr as garrafas com as ervas nele e, depois de duas ou três semanas, tomar o remédio. Homem de pouca fé, não comprei o vinho e não busquei as ervas. Correndo todos os riscos, optei por ficar com a medicina ocidental. Mas a história não acabou aí.

Depois de João Véio ter “resolvido” o meu problema, a minha amiga Adelci, a pessoa querida que tinha descoberto esse sacerdote-curandeiro de Lagarto, rapidamente, “embora não tivesse pensado nisso”, pediu para também fazer a sua consulta e entrou na sala onde os trabalhos eram feitos. Mais tarde, voltando para Aracaju, eu e Zé Maria rimos dizendo que ela tinha arrumado João Véio, não para mim, mas para ela.

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