Problemas do professor Silvério Leite Fontes com o regime militar

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Em 21 outubro de 1963, José Silvério Leite Fontes comandou greve de professores que também contou com a adesão dos servidores públicos estaduais. Em 5 janeiro de 1964, em clima de turbulência política no país inteiro, José Silvério Leite Fontes (ou professor Silvério tout court) tomou posse no Sindicato dos Professores de Ensino Superior, Secundário, Primário e Comercial do Estado de Sergipe. Depois do golpe militar de 1964, em 4 agosto do mesmo ano, foi convocado a depor no Quartel do 28º. BC como indiciado e prestou depoimento ao capitão Edgard Baptista de Mattos em inquérito policial militar. O que os militares queriam saber dele como líder sindical? Aos quarenta anos de idade era advogado, sindicalista, professor da Faculdade de Direito e do Ateneu.

Ele informou que liderou a greve do ano de 1963 porque os salários dos professores precisavam ser aumentados ou eram insuficientes para que os colegas tivessem uma vida digna. Em suas palavras, “a situação dos professores públicos era verdadeiramente dramática”. Antes de encabeçar a greve, tentou evitá-la, estando para esse fim duas vezes com Seixas Dória, o governador de Sergipe, um político engajado com as grandes reformas propostas pelo presidente João Goulart. Aceitou a indicação feita por professores em Assembleia do seu nome para comandar a greve – condicionando a ficar no cargo só por seis meses. Antes disso, ele tinha sido diretor do Ateneu.

O que foi feito em preparação para greve? O professor Silvério disse que esgotou todas as possibilidades de diálogos com as autoridades constituídas de Sergipe. Esteve a conversar com o governador e o vice-governador, bem como fora à Assembleia Legislativa. Como foi dito acima, durante Assembleia Geral com os professores de Ateneu, ocorrida antes do dia 21 de outubro de 1963, ele foi escolhido por seus pares para comandar a greve por aumento salarial. Apostou que, fazendo a greve dos professores com a adesão dos servidores públicos estaduais, liderados por Agonalto Pacheco, maiores seriam as chances de êxito nas reivindicações salariais das duas categorias. Os professores públicos estaduais estavam entusiasmados com o sucesso da greve, especialmente depois que souberam do bem-sucedido movimento paredista dos professores paulistas.

O seu inquiridor militar estava muito interessado em saber de suas relações com outras lideranças sindicais. O sindicalista Agonalto Pacheco, presidente da Associação dos Servidores Públicos de Sergipe  (ASPES), era o maior foco do interesse dos militares. O professor da esquerda católica sergipana informou conhecer Agonalto Pacheco “ligeiramente”. Acrescentou saber dele não como “agitador e subversivo”, como dissera o seu inquiridor, “embora constasse que fosse comunista”. Por que estabeleceu aliança com Agonalto Pacheco? Para aumentar as chances de sucesso do movimento grevista dos professores públicos e isso implicava ter conversações com o líder comunista. O apoio do presidente da ASPES era estrategicamente indispensável.

Falou que compareceu “a uma reunião para a posse da diretoria do CGT-SE” (Comando Geral dos Trabalhadores de Sergipe) no dia 9 de novembro de 1963 e, se fez isso, deveu-se ao fato de ter sido “convidado e as pessoas que compunham essa entidade eram (…) líderes classistas (…)” que tinham apoiado a greve dos professores e dos servidores públicos em outubro do mesmo ano. Era “um ato de cortesia”.

Continuando, afirmou que “houve solicitação de apoio de outras entidades de classes”. De acordo com o professor Silvério, a greve da qual fora a principal liderança recebera o apoio de mais ou menos trinta entidades classistas, desse grupo fazendo parte “sindicatos, associações profissionais, associações de servidores públicos, o Círculo Operário de Aracaju, etc.”.

Enquanto liderança grevista, negou que tenha comandado um suposto “piquete de greve que invadiu a Faculdade de Direito”, “porque estava na Comissão Dirigente da Greve, exercendo a presidência da Assembleia Geral que se declarara reunida permanentemente”. Ainda tratando da Faculdade de Direito, disse não se lembrar de ter tido entendimento com Gonçalo Rollemberg Leite, o diretor daquela faculdade no dia da greve. Foi mais longe, dizendo que “em todos os estabelecimentos de ensino houve piquete de greve para atuar pacificamente sob forma da persuasão”. Completou a resposta afirmando que, a maioria dos estudantes de Direito daquela faculdade também tinha organizado o seu piquete.

Quando foi perguntado o que achava do regime militar, deu como resposta que “ninguém é obrigado a dizer o seu próprio pensamento”, “um direito assegurado pela nossa Constituição Democrática, não derrubado pelo Ato Institucional”. O sindicalista aproveitou para acrescentar que sua vida e sua ação pública eram pautadas pela “religião católica e (pela) doutrina social e política contida nas Encíclicas dos Papas e nas Pastorais Coletivas do Episcopado Brasileiro”. A isso agregou ser um democrata e um cidadão respeitador das leis. Ele era contra ou a favor da legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB)? A essa questão deu uma resposta como jurista, ou seja, que no “nosso sistema legal não cabe o exame dos pensamentos, mas dos atos e das manifestações do pensamento que firam a ordem legal e inclusive das razões destes atos e manifestações”.

Quando foi arguido sobre a sua relação com a Ação Católica (AC), disse que não participou de conferência da Ação Católica e que houve, sim, uma troca de “palavras (com) o presidente em várias ocasiões” e que nenhum assunto foi discutido. Durante a greve dos professores e dos servidores públicos falou sobre “a situação cubana em relação à brasileira” de forma incidental e não se lembra bem do episódio.

Aproximando a inquirição do seu fim, o professor Silvério foi questionado sobre como viveu e acompanhou o golpe militar de 1964. Disse ele que, em 31 de março de 1964, estava em uma festa noturna com, entre outras pessoas, o vice-governador Celso de Carvalho, que se dirigiu ao Palácio Olímpio ao saber das movimentações “revolucionárias”. Pouco tempo depois, ele também se retirou da festa e marchou até a sede do governo para lhe prestar solidariedade num “momento de incerteza”. Por volta das três da madrugada, o comandante do 28º. BC, major Silveira chegou ao palácio governamental e ele, o professor Silvério, foi para a sua casa.

Na manhã do dia seguinte, como sempre fazia, foi dar aula na Faculdade de Filosofia. Na ausência de aulas, tomou o caminho da Praça Fausto Cardoso, lugar em que estavam reunidas várias pessoas, inclusive vários presidentes de sindicatos. Juntou-se aos presentes, sem esquecer que, “como cidadão, devia obediência às autoridades constituídas”. Outros dirigentes sindicais também foram ao palácio do governo tomar ciência das ordens do major Silveira, o qual solicitou a todos que se retirassem da praça e fossem a algum recinto fechado. Os sindicalistas seguiram então para o Clube do Trabalhador, tendo isso acontecido entre 12 e 13 horas. Na noite do mesmo dia, foi encontrar-se “com outros presidentes de sindicatos na sede da Federação dos Trabalhadores da Indústria”.

Ao ficar sabendo que o governador Seixas Dória tinha chegado do Rio de Janeiro, mais uma vez foi ao palácio do governo para saber a quantas andava o movimento do golpe militar. Então ficou sabendo que uma nova ordem legal e política estava sendo instaurada no Brasil. Com esse definitivo balde de água, os líderes sindicais tomaram providências como suspender a reunião mencionada e as manifestações sindicais programadas, partindo para suas residências.

O inquiridor voltou a perguntar sobre Agonalto Pacheco. O professor Silvério disse ter acontecido o seu último encontro com o colega sindicalista no dia 1º. de abril, no Clube do Trabalhador e que os dois concordaram em não fazer manifestação – embora o líder comunista tivesse opinião diferente até ouvir a opinião contrária do professor Silvério. Seguindo o mesmo raciocínio, o inquiridor militar quis saber se ele se encontrara com outros líderes sindicais no referido encontro do Clube do Trabalhador, entre 31 de março e 1º. de abril. Repetiu desconhecer pessoalmente as lideranças sindicais e por isso não sabia dizer nomes dos presentes à reunião. Tornara-se presidente do sindicato dos professores havia pouco tempo, em janeiro de 1964. Além do mais, dos sindicalistas que tinham se encontrado com o Major Silveira, alguns foram embora antes do fim da reunião.

Segundo ele, a tomada do poder por comunistas não significaria nada de bom na perspectiva de um católico, pois seria “vítima de um sistema totalitário”O inquiridor pediu ao professor Silvério fatos e provas que mostrassem a sua inocência. Ele respondeu dizendo que “não praticou atos de subversão” e que a greve que comandou não foi a primeira do Brasil. Relembrou ainda que a Assembleia Legislativa “reconheceu a legitimidade da greve dos professores e dos funcionários públicos estaduais”. O seu movimento de greve foi moderado e não houve agitação. A greve teve por objetivo apenas “aumento de vencimentos”. Aí, mais uma vez, tomou distância dos comunistas. De acordo com ele, “grave seria uma colaboração com o Partido Comunista para objetivos políticos”, a exemplo de partidos que usam o apoio do PCB para eleger seus candidatos. Aqui ele podia estar pensando na aliança entre a UDN e o PCB.

Na abertura dessa tentativa de síntese do depoimento do professor de Direito, escrevi que José Silvério Leite Fontes era presidente do “Sindicato dos Professores de Ensino Superior, Secundário, Primário e Comercial do Estado de Sergipe”, o que indica que as escolas superiores tinham entidade de representação sindical. O documento em que essa informação constava não era timbrado como os documentos da ASPES de Agonalto Pacheco e a lista dos professores empossados fora datilografada pelo próprio professor Silvério. No seu depoimento ao 28º. BC, ele é identificado apenas como presidente do sindicato dos professores estaduais. Se havia algum sindicato das escolas superiores privadas e federais, somadas às escolas públicas estaduais, esse é um problema a ser resolvido em outro espaço.

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