“O COMUNISMO VAI TE PEGAR”, O VELHO DO SACO PARA ADULTOS

Alexandre de Jesus dos Prazeres*
Bacharel em Teologia, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Sociologia

“O velho do saco vai te pegar” era algo dito as crianças com o intuito de as amedrontar e as manter distantes das ruas onde uma ameaça possível as poderia alcançar. Mas todos sabemos que isto se constituía em recurso utilizado para manter as crianças sob controle, o propósito era o de obter obediência através do medo. Não é algo novo criar uma ameaça imaginária, seja por meio de supostas conspirações ou de informações fragmentadas e manipuladas com objetivo de produzir medo. No campo político, isto pode ser realizado para obter o poder sobre a consciência das massas e através do medo as manobrar segundo os interesses específicos dos que desejam tal poder.

Foi observado o efeito deste tipo de manobra entre o eleitorado no Brasil, principalmente entre católicos e evangélicos. Nas eleições de 2018, as redes sociais (Facebook, Instagram, Youtube e Whatsapp) foram utilizadas por lideranças religiosas conservadoras e simpatizantes do bolsonarismo, tanto os que pleiteavam cargos eleitorais quanto por simpatizantes das candidaturas, para espalhar fake News acerca dos adversários políticos de partidos de esquerda. O principal recurso foi o de disseminar pânico moral entre o eleitorado. Os conteúdos destas postagens versavam sobre suposta ameaça à família tradicional, principalmente através do famigerado kit gay (uma referência ao Programa Brasil Sem Homofobia). Além destes, criaram distorções da realidade por meio de temas como Escola Sem Partido e “ideologia de gênero” (expressão cunhada para desqualificar as pesquisas acadêmicas conhecidas como “estudos de gênero”), assim como a tal “cristofobia”, sugerindo que os cristãos estavam sob perseguição no Brasil. A formação cultural religiosa cristã conservadora tornou estes eleitores mais propensos a manipulação.

O que tem sido chamado de direita ou extrema direita conservadora no Brasil tem conseguido habilmente associar estas questões à esquerda brasileira, construindo um imaginário, adotado por certa parcela do eleitorado, de que o Brasil está sob ameaça de um perigoso inimigo, “o comunismo”.

Uma explicação possível para isto, pelo menos no que se refere ao campo religioso brasileiro, é que o Brasil é um país de maioria cristã. Os católicos ainda são majoritários e estima-se que os evangélicos estejam se aproximando dos 30% da população, sendo que 70% destes são pentecostais. Ambos os cristianismos (católicos e evangélicos) são em sua maioria conservadores no que se refere ao campo da moral e dos costumes. Embora setores do catolicismo demonstrem progressismo, isto se limita apenas a dimensão social, no tocante a temas como aborto, divórcio e direitos LGBTQIA+ predominam posturas conservadoras. Entre os evangélicos há décadas existe uma representação progressista e ecumênica (igrejas, pessoas e entidades), porém é uma minoria difamada pela maioria evangélica fundamentalista.

“O bicho papão do comunismo” amedronta os evangélicos desde os anos que antecederam o Golpe Militar de 64. Às vésperas do Golpe Militar, no clima da Guerra Fria, também se estabeleceu nas igrejas evangélicas da época um clima anticomunista. Neste período, a referência às ideias marxistas em igrejas evangélicas era realizada com o intuito de denunciar tais ideias como ameaça. Nos discursos nas igrejas e em seus materiais impressos, os jornais institucionais, os argumentos frequentes eram:

  • As ideias marxistas deveriam ser rejeitadas por serem ateias e materialistas;
  • Também havia menções contrárias aos países que adotaram o socialismo e manifestação de apoio aos Estados Unidos. Os discursos se esforçavam por demonstrar que o comunismo internacional e o seu principal representante a União Soviética eram destruidores de nações, de famílias, e principalmente das igrejas, em oposição aos Estados Unidos que eram apresentados como um país referencial para os protestantes brasileiros;
  • Também havia incitação contra as pessoas dentro das igrejas (pastores e membros) que fossem rotulados como comunistas, líderes protestantes que tivessem posicionamentos sociais identificados ou rotulados como comunistas eram acusados de serem “falsos profetas” e no auge da Ditadura militar denunciados às autoridades como subversivos;
  • Nos sermões de um importante pregador batista estadunidense que eram amplamente difundidos no Brasil (Billy Graham), havia referência as ideias de Karl Marx em meio a declaração de que estas só morreriam quando os crentes se unissem em oração para derrotá-las, pois não se tratava de simples luta política, mas de uma batalha entre o bem e o mal.

Nesta formação histórica conservadora da maioria dos evangélicos brasileiros, jaz talvez o fator mais importante para se compreender as suas afinidades com relação pautas políticas de direita. Durante certo tempo se difundiu o entendimento equivocado de que os evangélicos eram apáticos a questões políticas por razões religiosas, não misturar “as coisas de Deus com as do mundo”, separação entre profano e sagrado. Porém já observamos que com referência ao anticomunismo em ocasiões nas quais o segmento se sentiu ameaçado, este tipo de pânico se constituiu em elemento de mobilização política por parte das lideranças de diversas igrejas. Isto nos anos que antecederam ao Golpe Civil Militar, mas também testemunhamos resquícios deste anticomunismo nas eleições de 1989 entre Lula e Fernando Collor. Neste momento, houve rechaço em relação à esquerda e receio das lideranças evangélicas em relação a dois possíveis cenários: a implantação de um “comunismo ateu” numa eventual vitória de Lula, ou a retomada da preeminência da Igreja Católica, sobretudo dos setores ligados ao Partido dos Trabalhadores. Os cientistas sociais, Pierucci e Prandi (no artigo “Religiões e voto: a eleição presidencial de 1994”, publicado em 1995), deixando de lado a perspectiva das lideranças evangélicas, focalizaram as suas análises no comportamento eleitoral dos evangélicos, os membros das igrejas, através de um survey. Assim como os demais trabalhos, no entanto, eles também acentuam os traços anti-esquerdistas de segmentos do campo evangélico ao detalhar que, pelo menos no que se refere à eleição presidencial de 1994, os pentecostais foram o grupo religioso que mais rejeitou a candidatura de Lula.

A linguagem religiosa é simbólica e estes símbolos têm sido mobilizados para obter obediência e adesão a um projeto político conservador e reacionário. O elemento reacionário deste projeto se manifesta no campo religioso como sentimento de ameaça pelas lutas por direito das minorias, ou por justiça, distribuição de renda e redução das desigualdades sociais e econômicas. O projeto político da direita brasileira tem sido propagado nos púlpitos das igrejas e traduzido em termos mítico-simbólicos como uma luta do bem contra o mal, trata-se de um discurso escatológico.

As escatologias são os mitos acerca do fim dos cosmos, a lógica é a de que um determinado cosmo se tornou decrépito ou chegou a um estágio final de decadência e por isso precisa ser destruído para ceder lugar a um novo. Em termos revolucionários, esta linguagem mítica pode se aplicar ao reconhecimento de que determinada ordem social está associada à injustiça e as desigualdades, devendo ser extinta para que uma nova ordem social ocupe o seu lugar. Pela via conservadora, a ordem social é interpretada como boa ou satisfatória, estando sob ameaça de forças do mal que pretendem destruí-la, tais forças devem ser aniquiladas e a ordem social preservada. É neste nível mítico-simbólico conservador que os discursos políticos estão sendo acionados em meio a população brasileira. Os ricos e a classe média brasileira sentem que o seu mundo está sob ameaça. E identificam como ameaça pessoas e ideias que defendem direitos de minorias (LGBTQIA+, mulheres e negros) ou denunciam as injustiças e desigualdades da ordem social vigente. A classe média, principalmente, admira os ricos e acusa os pobres de não se esforçarem o suficiente (meritocracia), de terem muitos filhos e buscarem uma vida as custas do Estado. Essa classe média abraçou a meritocracia como princípio, sente-se superiora aos pobres devido à diferença socioeconômica, e não percebe no acúmulo crescente de riqueza pela minoria rica um problema, pelo contrário, acredita que pode enriquecer também, o problema são “os pobres, preguiçosos e indolentes”.

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