Encontros com Alencar Filho: intelectual, gestor público e brasileiro

José Vieira da Cruz – Historiador, professor da UFS e membro do IHGSE

No último sábado, 13/03/2021, recebi a notícia do falecimento do professor Clodoaldo de Alencar Filho – agente cultural, intelectual, gestor, servidor público, reitor emérito da UFS e humanista. Eu tive a honra de trabalhar com ele e de tê-lo como um de meus entrevistados nas pesquisas que desenvolvi sobre ensino superior, movimento estudantil e a sociedade em Sergipe.

Alencarzinho, como muitos o conheciam, nasceu em Estância, sul de Sergipe, em 27 de setembro de 1932. Filho do poeta, advogado, jornalista e escritor Clodoaldo Alencar e de Eurydice Fontes de Alencar, descendência familiar que remonta ao escritor cearense José de Alencar, autor do clássico literário Iracema.

Formou-se em Letras Inglês, pela Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe (FCFS), a antiga Faculdade de Filosofia (FAFI) – uma das seis instituições reunidas para formar a Universidade Federal de Sergipe (UFS), em maio de 1968. Alencar, como grande parte dos estudantes e professores universitários das décadas de 1950 e de 1960, participou do movimento em favor da fundação da referida universidade federal.

Sua trajetória biográfica é ampla, diversificada e rica. Ele, de forma engajada, tomou parte da cena política e cultural de Sergipe: no rádio, no teatro, na poesia, na imprensa e em várias esferas da gestão pública (no município de Aracaju, no Estado de Sergipe e na UFS).

A participação de Alencar na cena cultural remonta à década de 1950 quando manteve os primeiros contatos com o florescente teatro urbano brasileiro. A partir desse contato, na década seguinte, ajudou a montar, nas terras do cacique Serigy, o clássico da dramaturgia nacional “Eles não usam Black-tie”, de autoria de Gianfrancesco Guarnieri. O texto retrata os dramas de um sindicalista e de sua família premidos pela lide política e econômica. Eles se encontram entre o chão de uma fábrica e uma comunidade operária em um morro na periferia de uma cidade do Sudeste.

No campo das artes cênicas, Alencar alimentou diversas outras participações junto ao teatro amador, inclusive junto ao Diretório Acadêmico de Letras “Amando Fontes” – entidade estudantil associada ao curso de letras da então Faculdade de Filosofia –, como também, junto ao teatro infantil “Teatro Gato de Botas”.

Além disso, Alencar atuou na locução de programas de grande audiência na Rádio Cultura, publicou o livro de poesias e de crônicas “Aracaju etc e tal”, contribuiu no Sergipe Jornal com uma coluna sobre turismo. Dentre outras interações junto aos movimentos culturais e políticos no Estado, entre as décadas de 1950 e de 1990, participou da Companhia Estudantil de Alfabetização (CEA), do Movimento de Educação de Base (MEB), da criação da Galeria de Artes Álvaro Santos, da organização do Festival de Arte de São Cristóvão (FASC), da criação da Empresa Sergipana de Turismo (EMSETUR), da vice-reitoria e da reitoria da UFS, dentre outros movimentos, experiências e atividades.

Após os desdobramentos de 31 de março de 1964, o ativismo político e cultural de Alencar Filho valeu-lhe algumas “conduções coercitivas” ao quartel do 28ª Batalhão de Caçadores (28ª BC). Sob a mira do Sistema Nacional de Informações (SNI), a trajetória biográfica de Alencar lhe rendera também a classificação de “esquerdista”, “contrário a Revolução de 31 de março de 1964”, “subversivo”, por isso, seu nome sofreu  “vedação a indicação do cargo de governador”, dentre outras qualificações registradas na ficha de número 14455/1975, do Livro de Dados Biográficos (LDB), do qual transcrevemos a seguinte anotação: “Preso após a Revolução de 1964, como suspeito de subversão, nada ficou comprovado. Naquela época [década de 1960] trabalhava na Prefeitura de Aracaju e foi criador de um grupo de teatro infantil. Era também radialista e transmitia a programação do MEB, de cunho socialista, no entanto ficou comprovado que apenas transmitia as notícias, já as recebendo escritas. Atualmente é professor do ensino médio e vive sempre envolvido com assuntos de turismo. Formulou o projeto da EMSETUR e foi o seu primeiro Presidente”.  Estas informações encontram-se disponíveis no acervo de documentos do Arquivo Nacional, coletadas a partir do projeto Memórias Reveladas.

A respeito da inflexão política desencadeada pelo Golpe civil-militar de 1964, em setembro de 1998, ao entrevistá-lo, perguntei-lhe quais foram os significados daquele acontecimento. Ele parou, respirou fundo e respondeu: “Olha… as primeiras 62 horas… Foi uma depressão horrível! Teve gente que foi presa logo no dia. Eu fui preso em maio. Ali não era somente o medo de ser preso… Acabou! O ano parou… E agora?… E agora?… Vou voltar a apoiar o concurso de miss, as dez mais elegantes… Toda a alienação da sociedade voltou! O que o movimento de política popular estava começando a inibir… Ficou um vazio!… Ficou um vazio!… Um silêncio profundamente eloquente!”. A descrição do impacto dessa ruptura histórica, mas que uma pedra no caminho, implicou no abismo em que o país se deparou, nas duas décadas seguintes, e com reminiscência até o presente.

Dentre as suas experiências de gestão, destacam-se sua participação na gestão municipal de Aracaju, na época do prefeito Godofredo Diniz Gonçalves (1963-1967), quanto foi Chefe do Serviço de Imprensa, do Divisão de Difusão da Cultura, e um dos responsáveis pela criação da Galeria de Artes Álvaro Santos, pela organização da Primeira Feira de Livros de Sergipe e pelo levantamento dos terreiros de culto de matriz africana em Aracaju. Esta última atividade, em uma ação reversa a intenção de Alencar Filho de valorizar a diversidade étnica e religiosa, foi classificada pelos órgãos de segurança e informação como “terreiros de macumba”.

Na gestão estadual, foi Secretário de Estado da Educação de Sergipe (SEED), no governo de Albano Franco, em 1995. Além de ter sido um dos responsáveis pelo projeto de criação da EMSETUR, chegou a presidi-la. Em ambos os casos, tanto da EMSETUR quanto da SEED, nos sites não há informações quanto à sociogênese de sua criação, tão pouco, de seus gestores, servidores e das realizações das respectivas instituições. Um traço rotineiro em um país que vive de mitos, negacionismos e esquecimentos.

Mas, de modo ainda mais marcante, na gestão da UFS Alencar Filho ocupou diferentes cargos e funções: Membro da Comissão Central do Concurso Vestibular (CCV), Coordenador Geral do Festival de Arte de São Cristóvão (FASC), Assessor de Comunicação Social, Diretor do Centro de Cultura e Arte (CULTART), Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários, Membro do Conselho do Ensino e da Pesquisa (CONEP), Vice-reitor, na gestão do Reitor Eduardo Conde Garcia (1984-988),  Vice-presidente do Conselho Universitário (CONSU), Vice-Presidente do Conselho do Ensino e da Pesquisa (CONEP) e, de Reitor, no período de 1988-1992.

Em relação a experiência de Vice-reitor e de Reitor, em ambas ele foi eleito pela comunidade universitária e confirmado na lista tríplice pelo CONSU. Na condição de Reitor, em particular, destaca-se o fato de ele ter sido o candidato eleito pela comunidade universitária em primeiro lugar e, igualmente confirmado na lista tríplice do CONSU/UFS, a ser nomeado pelo Ministério da Educação (MEC) ao cargo.  Inaugurando uma tradição somente violada pelo atual governo federal com a indicação de uma “Reitora Pro Tempore”.

Deste modo, a biografia de Alencar Filho confirma sua participação de ativista desde o “movimento popular de cultura” – como ele gostava de se referir aos movimentos culturais e políticos que antecederam a ditadura civil-militar –, passando pelo período da redemocratização e da Nova República – participando de mobilizações para realização de eleições diretas para o Diretório Central dos Estudantes (DCE) e da Reitoria da UFS, bem como, de eleições diretas para a Presidência da República, em favor da Constituição de 1988 e em defesa da autonomia universitária.

Trabalhei próximo do Reitor Alencar Filho, entre 1989 e 1990, quando fui office-boy em seu gabinete na UFS. Eram tempos difíceis, de instabilidade econômica, de privatizações e de políticas neoliberais severas, duras e desabonadoras para as universidades, os sistemas de saúde e os serviços públicos de um modo geral. Atmosfera identificada e problematizada por Alencar Filho, na carta aberta que dirigiu à comunidade universitária da UFS durante sua campanha à reitoria. Em um dos trechos da carta ele destaca “Há meses uma lamentável campanha vem sendo movida contra a Universidade Pública, através dos mais diversos meios de comunicação, acentuadamente na grande imprensa nacional. Esta verdadeira guerra tem por finalidade enlamear a imagem da Universidade e, assim, fazer o povo acreditar que a Universidade Pública não só é incompetente, como formada por incapazes, desonestos, preguiçosos e baderneiros” (Carta aberta à comunidade universitária, Gazeta de Sergipe,12 de maio de 1988, p.6). Inverdades contra as quais Alencar Filho estabeleceu um compromisso de campanha e de gestão para combater. A atualidade desta Carta revela a necessária persistência na luta em favor da ciência, da educação e da saúde pública em nosso país. Áreas do serviço público tão caras à população em tempos de crise como a que estamos atravessando.

Na época, em meio àquele mar revolto, acompanhei de perto a postura do Reitor Clodoaldo de Alencar Filho e seu esforço, trabalho e zelo para organizar a Universidade em um contexto de transição política e de consolidação dos compromissos institucionais junto aos valores democráticos e de desenvolvimento humano, social, econômico e de inovação científica. Presenciei, da ante sala do gabinete, diálogos, debates e tensões de gestores, docentes, técnicos e estudantes que aguardavam a agenda de reuniões, audiências e encontros com o então Reitor. Observei a constante preocupação com a falta de recursos e os sinais antecipados de disputas acaloradas em torno de ideias e pontos de vista por projetos políticos, acadêmicos e sociais, pareciam oceanos de problemas infindáveis. Mas Alencar, como Reitor, do seu jeito e ao seu tempo, recebia a todos e atendia a todos. Elegante, com um sorriso estampado no rosto, conversava, ouvia e dialogava, de modo desembaraçado, sobre temas os mais variados. Era um homem que lia muito e dominava um vasto conhecimento humanístico.

Após as reuniões, muitos problemas exigiam um tempo maior e disponibilidade de recursos para sua resolução. No entanto, os participantes saíam desses encontros mais aliviados por terem compartilhado suas demandas, projetos e anseios com o Reitor. Além disso, em outras ocasiões, Alencar Filho, diante de pedidos extra protocolares, sem meios termos prontamente respondia que a Universidade seguia os ditames da lei. E reforçava que a instituição deveria tratar de servir à sociedade e a todos por igual. Postura, atitudes e gestos inspiradores.

Alencar Filho, em seu mandato como Reitor, ampliou o acervo bibliográfico da Biblioteca Central (BICEN) e organizou o Núcleo de Assuntos Internacionais. Foi também responsável pela criação dos cursos de Bacharelado em Informática, Psicologia, Bacharelado em Ciências Sociais, Comunicação Social/Jornalismo, Arte e Educação, Rádio e Televisão e Engenharia Agronômica – este último é considerado a semente que, anos depois, daria origem ao Centro de Ciências Agrárias Aplicadas (CCAA).

Dentre suas realizações merecem destaque também a transferência do ambulatório do Hospital de Cirurgia para o atual campus do Hospital Universitário, no bairro Cidade Nova, conferindo mais espaço, estrutura e autonomia à área de ensino, pesquisa e extensão em Saúde. E, de igual forma, a inserção da UFS, junto com outras universidades – UFAL, UFG, UFV, UFMT, UFPI, UFRRJ e UFRPE –, na Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (RIDESA), conferindo solução de continuidade às pesquisas desenvolvidas pelo Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-açúcar (PLANALSUCAR) – extinto pela política neoliberal do governo Fernando Collor. A disposição das universidades envolvidas em assumir este compromisso permitiu a continuidade na melhoria dos rendimentos da cultura, tanto no campo, como na indústria, garantindo ao país o domínio tecnológico sobre essa área de conhecimento e de mercado. Este é um dos vários exemplos de que a inovação tecnológica e soberania econômica de um país demanda investimentos contínuos em educação, ciência e em política de Estado ou na ausência desta última, de universidades autônomas, conscientes e comprometidas com o desenvolvimento e bem-estar da sociedade. Dito isto, ao gosto do tempo, em 05 de dezembro de 2018, entre uma de minhas visitas à Aracaju, encontrei-me com o professor Alencar, em um café, em frente a uma livraria, em um shopping da cidade. Na oportunidade conversamos sobre o período em que ele havia sido Reitor e sobre minhas experiências junto à Vice-reitoria da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Ao final da conversa o presenteei com o meu livro, “Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino superior e a sociedade em Sergipe, 1950-1985”, em troca recebi um largo sorriso e uma expressão de reconhecimento. E é, com esta lembrança, gesto e exemplos que presto minha mais sincera homenagem ao professor Clodoaldo de Alencar Filho – agente cultural, intelectual, gestor, servidor público, Reitor Emérito da UFS e grande brasileiro.

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