Com “Moeda vencida”, Francisco Dantas segue depurando uma escrita de valor permanente

Oitavo romance do escritor sergipano foi lançado no final de 2022 pela Editora Alfaguara, selo do grupo Companhia das Letras

Márcio Santana Sobrinho é jornalista e tradutor literário

Alguém já disse que um livro é bom se você puder abri-lo a esmo, em qualquer página, e ler algo proveitoso ali. Faça o teste com qualquer coisa que Francisco Dantas publicou e você terá a prova do valor literário deste autor. Há trinta anos ele vem, com sua escrita lapidar, honrando a melhor tradição do romance brasileiro e o reconhecimento que recebeu dos grandes críticos nacionais desde o seu primeiro livro. E dali não desce, mas só se alteia, infenso às variações negativas que por vezes marcam a carreira de alguns escritores.

Em seu oitavo romance, “Moeda vencida” (Alfaguara, 2022), este mestre da prosa nacional retoma a carga numa narrativa ágil, desenvolvida em capítulos curtos, quase como contos independentes. Nela, Abelardo das Candeias, um professor retirado de sua cátedra a troco de falsas homenagens, vasculha a memória — essa chave da escrita de Dantas — para recriar uma época que, embora não muito distante, já não existe, transcorrendo num povoado do interior de Sergipe do século passado.

Trata-se de um tempo no qual os bichos são protagonistas da sobrevivência e do conforto humanos — fossem ou não retribuídos por isso. Foi num tempo desses que viveu o narrador, ainda moço, com seu pai, Desidério, um sujeito da lida com os animais e com os homens, e que sabia ser humano e leal para com ambos. Em contraste, a crueldade com os bichos é personificada na figura de Duarte Pirão, a qual revela um coração indisposto e indigente não só com os animais, mas também com o próximo.

Os encontros e desacertos entre Desidério e Pirão percorrem, sem resvalar em maniqueísmos, uma boa parte dessa obra de 192 páginas, com espaço de sobra para outras figuras cativantes, cuidadosamente descritas, que vão engrossando o enredo. Mas todas vão surgindo e tomando forma por meio de sua relação com os bichos: seja o cavalo que enverga sob o peso de um padre glutão, ou o que é surrado por um homem desalmado e cruel, os bichos ajudam a revelar quem são os homens.

Revelam também o próprio tecido social, marcado pela aludida relação de interdependência entre homens e bichos. E essa abordagem é algo que surge na obra de forma igualmente natural, sem se fazer acompanhar de nenhuma sanha sociológica, mas como consequência mesma da necessidade interna de dar vida e contexto às personagens.

E assim, as mazelas impostas aos bichos e as vividas pelos homens — estas por imposição ou escolha própria —, aparecem bem marcadas no livro, mas não como propaganda de causas sociais ou animais, senão na forma de boa literatura. O egoísmo, a corrupção, a crueldade, o fingimento, a impostura e tantos outros males que nos cercam vão ali descritos, desvelando as intenções que nos movem, e que sempre fizeram padecer homens e bichos, mostrando que o homem é o lobo do homem, e o lobo do lobo…

O fito do autor não deve ser, de modo algum, confundido com o de humanizar os bichos e igualá-los ao homem, algo tão na moda. Mesmo porque, convenhamos, buscar fazer isso por meio de um romance só serviria, ironicamente, de prova da distância entre nós e eles, visto que animal algum jamais se interessou nem compreenderá coisa alguma dessa faceta única do mundo humano que é a literatura. Besta alguma jamais entendeu ou quis saber o que dela disse Esopo…

Chamo a atenção para as descrições dos capítulos finais, que me pareceram os mais tocantes, e de uma beleza ímpar e até mesmo heróica. Não por acaso, tais cenas culminam em uma nota de simbolismo máximo. E dizer mais sobre o enredo é arriscar passar por estraga-prazeres.

Enquanto lia esse livro, lembrei algumas vezes de uma visita que fiz à fazenda em que Francisco Dantas mora. Fui entrevistar a professora Maria Lúcia Dal Farra, poeta finíssima e pessoa boníssima, esposa do escritor, que havia sido então agraciada com o Prêmio Jabuti de Poesia. Naquela tarde, Francisco contava do afeto que tinha por um burrinho de estima, morto pela velhice há pouco tempo, mas que lhe servira muitos anos naquela propriedade — e, contando, chorava.

Nunca imaginei ver aquele tipo durão, recluso, meio bicho do mato mesmo, furtivo a entrevistas, arredio a muita aproximação, chorando por um animal. Mas é que, como o seu romance acaba por mostrar, é preciso ser humano para se condoer dos bichos.

Esse caso, e as cenas em que o próprio Desidério se envolve durante a narrativa, me fizeram lembrar um dos ditos da sabedoria bíblica que nos chegou pela pena de Salomão: “o justo cuida das necessidades de seu gado, mas cruéis são as entranhas do ímpio” (Provérbios 12.10).

Aprendeu Francisco a amar os bichos com o seu próprio pai, a quem, na epígrafe, dedica este romance? Aliás, quanto de biográfico e quanto de imaginário existe naquilo que ali escreveu? Disso não sei, mas pensei em perguntar, se um dia voltar a revê-lo… Mas é pergunta besta, que nada acrescenta à literatura. Porque o livro é moeda que tem valor próprio. Vale quanto o escritor conseguiu imprimir nele de permanente. Vale pelo que está dito. Vale pelo que se amalgamou ali de universal.

Se Francisco cavuca a memória para descrever neste romance um tempo que já não existe, é para ter pano de manga em que retratar aquilo que independe de tempo, as experiências que sempre tocarão aos homens, pouco importa a época; as de valor permanente, cada dia mais vivas na obra deste — desde a estreia — escritor maduro.

Márcio Santana Sobrinho é jornalista e tradutor literário

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