Besta fera

José Lima Santana – Padre, professor e advogado

O município, recentemente emancipado, a custo de confusões e até mortes,
enfrentaria a sua primeira eleição municipal. Os chefes políticos do município maior do
qual Brejão das Almas tinha se separado, ainda detinham poderio de mando sobre a
cidadezinha e os povoados agrupados no novel município. A disputa, então, para os
cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador, este com nove vagas, ficava por conta dos
apaniguados de Doquinha do Tanque Limpo e de João Pedro da Barra Funda, vulgo
Besta Fera, na voz dos seus opositores. Besta Fera tinha nas mãos a Prefeitura da sua
cidade, Nossa Senhora do Pilar, e contava com o governo estadual, da UDN. O PSD
estava debaixo, no Estado, há duas eleições. O candidato apoiado por Besta Fera em
Brejão das Almas era o seu genro, Chicão de Zé Maria, sujeito endinheirado, mas muito
mofino, que, por certo, não teria nascido para a política, mas para ela sendo empurrado
pelo sogro casca grossa.

Do outro lado, o candidato a prefeito era Joca Mulatinho, vereador há três
mandatos no Pilar. Este, sim, político até as tripas. Dizia-se que com ele até as
lombrigas dos eleitores buchudos votavam. Sujeito sagaz, capaz de dar nó em pingo
d’água para arranjar votos. Era um pé ligeiro nas estripulias eleitorais. Nisso, ele sabia
onde o cão dormia. Um populista de primeira hora, batedor de pernas por bodegas e
cacetes-armados onde quer que se situassem, bom de lábia e de copo, misturado ao
povinho raia-miúda daqui, dali e dacolá. Joca era apoiado pelo Dr. Fulgêncio Marques
de Brito e Melo Alencar, médico cearense há mais de trinta anos radicado no Pilar e
deputado estadual pela segunda vez. E claro, apoiado por Doquinha.
Os embates políticos prometiam escaramuças naquela primeira eleição de Brejão
das Almas. Os dois lados prometiam queimar enxofre, torrar castanhas de caju sem
azeite. Aproximando-se o dia da eleição, os comícios pegavam fogo. Homens armados
protegiam os candidatos dos dois lados. Besta Fera arranjara uns cabras das Alagoas. Já
o deputado Fulgêncio e Doquinha arregimentaram uns protetores para Joca Mulatinho
dali de perto, da Cruz de Ferro, povoado de gente acostumada a tocaiar, e do Riacho
Sangrento, outro povoado de homens desassombrados. Para quê buscar pistoleiros de
fora? Por ali tinha dos bons e dos melhores.

Uma carnificina parecia estar armada, prestes a explodir. Os dois lados
arrotavam vitória e vomitavam ameaças. Pelo jeito, o cemitério local seria pequeno para
conter tantos corpos, tal era a assustadora carnificina que se avizinhava.
No domingo anterior à eleição, Maria do Socorro de Pedrão de Chico Batoré
acordou cedo, mais do que de costume, para cuidar na casa e poder sair para votar
dentre os primeiros eleitores. Não gostava do fuzuê do dia da eleição, gente para lá e
para cá, zanzando como baratas tontas, as bocas de urna esquentadas e tudo o mais fora
da conta. Preparava o café quando ouviu um pipocar de tiros. Era uma saravaida de
balas que parecia uma guerra de verdade. A guerra de Brejão das Almas como
certamente haveria de ficar conhecida. Gritos, palavrões e mais pipocar de balas. Correu
para a varanda, abriu devagarinho uma janela e lá estava a carnificina. A praça onde se
situava a sua casa encontrava-se coalhada de corpos, o sangue escorrendo como um
riacho. Uma bala arrancou um tampo na janela vizinha. Mais que depressa, ela fechou a
janela onde estava, caiu de joelhos e pôs-se a rezar. Se continuasse daquele jeito, não
sobraria ninguém na nova cidade. Para que foram emancipar Brejão das Almas? Para
aquilo? Para fazer da sua primeira eleição municipal uma guerra despropositada? Que
Deus abrandasse os corações carregados de ódio, de ganância pelo poder. Mas que
poder? Numa cidade que de cidade mesmo só tinha o nome.

O tiroteio continuou por horas a fio. A gritaria e os palavrões foram, pouco a
pouco, diminuindo. O pipocar dos tiros também foi cessando. Novamente, Maria do
Socorro entreabriu a janela, cautelosa. Medo de uma bala perdida. O que ela viu era
ainda mais assustador do que antes. Montes de corpos caídos, destroçados. Nas valetas
o riacho de sangue já era caudaloso. Os dois candidatos a prefeito estavam caídos na
calçada da igrejinha, um ao lado do outro, como se tivessem se matado. Na porta da
igreja, o corpo do padre Filomeno Cardoso jazia com as mãos trançadas sobre o peito.
Àquela altura, imperava o silêncio. Até parecia que ela era a única sobrevivente daquela
carnificina. Mas, outras pessoas também deveriam ter sobrevivido. Do contrário, seria
uma lástima.

De chofre, um menino ensanguentado chegou-se para ela, que se assustou. Era
Mundinho, seu afilhado. Ela abriu a porta para acolhê-lo. Ele caiu em seus braços,
arquejando. Morreu logo. Maria do Socorro entrou em desespero. Abriu um berreiro
desmedido. Mundinho era seu afilhado favorito, dentre alguns que ela tinha levado à pia
batismal. Era como se fosse um filho. Do seu corpinho de seis anos, o sangue fluía por
um sem número de furos. Tiros em profusão. Na visão perturbadora de Maria do
Socorro, o sangue de Mundinho inundaria a sua casa, a cidade, o mundo. Jorrava sem
parar.

Dona Janaína gritou na porta do quarto de Maria do Socorro: “Socorro, levante
para se ajeitar. Hora do café. Daqui a pouco, começa a votação”. Maria do Socorro,
professora municipal, provinda do Pilar e, agora, na rede municipal da nova cidade,
Brejão das Almas, acordou do pesadelo. Uma coisa horrorosa que lhe invadiu o sonho,
ganhando força de pesadelo. Que Nossa Senhora do Desterro desterrasse as
maledicências dos dois lados. Que a eleição não se desse suja de sangue.
Café tomado, foram as duas, mãe e filha cumprir o dever cívico. Tudo parecia
tranquilo, apesar de muitas caras mal encaradas espalhadas pelos cantos. Seriam os
pistoleiros, prontos para dar início ao banho de sangue do seu pesadelo? Que nada! A
eleição transcorreu sem sobressaltos. O genro do Besta Fera contava com a vitória.
Afinal, gastara uma fortuna, comprando votos. Joca Mulatinho, pelo seu lado, já tinha
comprado o terno para a posse. Confiava no seu jeito de lidar com as pessoas,
misturando-se à raia-miúda. Afinal, venceu Joca Mulatinho. Desbancou o Besta Fera e o
seu genro endinheirado. Nove votos de diferença.

No dia seguinte, um tiro certeiro derrubou o primeiro prefeito eleito de Brejão
das Almas. Um pistoleiro postado por detrás do muro da casa de Severino Três Pernas,
cabo eleitoral do Besta Fera, foi quem desferiu o tiro. Joca Mulatinho foi levado, more-
não-morre, para o acanhado hospital do Pilar. Resistiu. Escapou. Tomou posse no dia
certo. Maria do Socorro tornou-se secretária municipal de educação. Quanto ao
pistoleiro atirador, escafedeu-se. Mas, disseram depois que ele foi morto a mando do
próprio Besta Fera. Tendo errado o alvo, passou a ser, então, o novo alvo. Sertão de
fogo. Meses depois, Besta Fera seria picado por uma cobra venenosa. Veneno poderoso.
Sem antídoto.

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