Artigo: Síndrome de Estocolmo

Clóvis Barbosa

Tempos sombrios estamos vivendo. Se não bastasse a pan-demia do coronavírus afetando o mundo inteiro, temos também, no Bra-sil, uma fase política aterradora. E aqui falo de um fenômeno que está ocorrendo no dia a dia de muitos brasileiros. Pois bem. Ninguém imagi-naria que um assalto a banco na capital sueca pudesse revolucionar a ciência da psicologia. O evento ocorreu no Kedtbanken de Norrmalms-torg, Estocolmo, no mês de agosto de 1973, quando Jan-Erik Olsson, acompanhado de um comparsa, Clark Olofsson, entrou na agência ban-cária armado com uma metralhadora e explosivos, fazendo alguns fun-cionários da instituição financeira reféns. Durante seis dias – 23 a 28 de agosto – foi um pandemônio o processo de negociação para soltura dos sequestrados. Ao final, a polícia usou gás lacrimogênio, o que fez com que os dois assaltantes se rendessem sem nenhuma baixa entre os aprisionados. Mas o que mais impressionou a polícia, a comunidade ci-entífica e observadores foi a despedida entre sequestradores e seques-trados, com trocas de abraços e choros, numa total solidariedade, che-gando ao ponto de os funcionários do banco solicitarem à polícia e à Justiça que nada de ruim acontecesse aos seus algozes. O criminólogo e psicólogo Nils Bejerot foi quem ajudou a polícia durante o assalto e desenvolveu a tese conhecida como Síndrome de Estocolmo. A partir daí, os estudos sobre o tema foram discutidos no mundo inteiro, sendo adotados pela psicologia. A Síndrome, portanto, tem como base a sub-missão de uma pessoa, num estado psicológico particular, que após um prolongado período de intimidação passa a estabelecer um sentimento de afinidade com o seu agressor.

Há a possibilidade, dizem os estudos, de essa simpatia ser originada de um mecanismo inconsciente de defesa, projetando senti-mentos afetivos na figura do verdugo, objetivando, com isso, amenizar a tensão entre ambos. A psicanálise explica que pessoas dessa estirpe devem ter desenvolvido na infância – junto a familiares ou agregados – algum tipo de comportamento de natureza sádica ou masoquista, o que se inseriu, implicitamente, na sua personalidade. Vejamos o caso das mulheres que não conseguem se libertar do marido opressor apesar de

toda uma estrutura legal existente para lhe proteger. Afora todas as ma-zelas estruturais de falta de proteção do Estado, o fato é que quanto mais dignidade e autoestima elas perdem, mais temor adquirem em re-lação ao seu agressor. Houve um caso em 1974, nos Estados Unidos da América, envolvendo a grande herdeira do magnata das comunicações, William Randolph Hearst, que inspirou o lendário filme de Orson Welles, Cidadão Kane. A jovem Patty – sequestrada por membros do Exército Simbionês de Libertação, que se intitulava movimento de contracultura e de defesa dos povos oprimidos – após ser libertada do cativeiro uniu-se aos seus sequestradores, indo viver com eles e tornando-se cúmplice dos ilícitos criminais praticados pelo bando. Fincada, pois, num fato real, a Síndrome de Estocolmo penetrou no mundo da ficção, sendo os exemplos os mais diversos. O escritor George R.R. Martin é autor da série de livros “As Crônicas de Gelo e Fogo”. Na sua adaptação para a TV há um episódio em que um personagem – sequestrado e torturado – desenvolve um certo amor pelo seu opressor. O cinema, então, é es-plendoroso em mostrar essas experiências, como no filme espanhol Ata-me, de Pedro Almodóvar.

Na película, a personagem Marina Osório (Victória Abril) apaixona-se pelo seu sequestrador Ricky (Antonio Banderas) e, após ser libertada, volta a procurá-lo para viver com ele. Na série “La Casa de Papel”, onde um grupo de nove ladrões, liderados por um professor, prepara o roubo do século na Casa da Moeda da Espanha, a persona-gem Mónica Gaztambide se apaixona pelo sequestrador Denver. Há um fato curioso no dilema vivido por Mónica. Antes do sequestro ela tinha um caso com seu chefe, Arturo, e descobriu que estava grávida. Ao co-municar ao amante sobre a gestação, ele pouco se importou e insinuou que deveria abortar. Denver demonstrou solidariedade a ela e não lhe passou as pílulas abortivas, sob a alegação de que a criança não podia pagar por aquilo. Além disso, o assaltante salvou a vida dela quando o chefe do assalto, Berlim, decidiu pela sua execução. Ele deu um tiro nas coxas de Mónica para simular que havia cumprido a missão, mas a tran-cafiou em um esconderijo no interior do banco, ajudando-a a se recupe-rar. Além de casos de sequestros, violência doméstica, cenários de guerra, a Síndrome também está sendo estabelecida na vida política brasileira. Como pode alguns membros da chamada minoria, que vivem em situação de vulnerabilidade – tais como negros, homossexuais, mu-lheres, indígenas, intelectuais, deficientes e nordestinos – viverem idola-trando aqueles que, diuturnamente, têm uma visão estereotipada sobre eles? Estaríamos convivendo com a chamada Síndrome de Estocolmo? É aterrorizante a extensão de irracionalidade que vive hoje em alguns representantes desses segmentos sociais, que veem, mas não enxergam. Aliam-se àqueles que sempre lhes observam pelas costas. Que lhes veem como objeto e nunca como sujeitos da história.

Indago-me, como fazia o mestre Darcy Ribeiro: por que o Brasil ainda não deu certo? Desde seu descobrimento, passando pelo período colonial, monarquia, república velha, ditaduras, nova república e golpes, raríssimos foram os seus avanços no campo social. E o pouco que se conquistou está ameaçado de perder. Estamos voltando aos tempos do coronelismo, sustentáculo político da chamada República Ve-lha, que se estendeu de 1889 até 1930? Lamentavelmente, há quem queira retornar a um dos períodos mais violentos da história brasileira, quando proprietários de terras, apoiadores de políticos igualmente sala-frários e descomprometidos com o país, tornaram-se donos do interior do Brasil. Quem não rezasse pela sua cartilha estaria fadado a desapa-recer definitivamente da face da terra, já que os desmandos e as violên-cias praticadas pelos seus jagunços estavam abençoados pelo esta-blishment político da época. Este Brasil não pode voltar a ser vivencia-do. Temos que andar para frente. Vivemos hoje num mundo dirigido por doentes mentais, que possuem uma alteração no elemento psíquico de-nominado percepção, a exemplo da esquizofrenia. Esquizofrênicos en-xergam coisas que não existem no mundo real. Já a deficiência mental é a enfermidade que alcança o psiquismo no âmbito da “inteligência”, a exemplo da tríade oligofrênica: debilidade, imbecilidade e idiotia. Psico-patia, portanto, não é doença, nem deficiência. É uma condição, inata e irreversível. Ser psicopata equipara-se a ser branco, negro ou índio. As-sim como um índio nasceu e morrerá índio, um psicopata nasce e morre psicopata. Esse tipo de comportamento pode e deve ser tratado urgen-temente.

Essas reflexões nos impelem a estranhar esse exército de discriminados que apoia personagens favoráveis à tortura, à eliminação sumária de criminosos e que têm preconceitos em relação a negros, homossexuais e mulheres. A cada dia é uma aberração atrás de outra: frases desconexas, ataques impiedosos a adversários, desobediência diária aos mandamentos constitucionais que se jurou cumprir, maledi-cências, ódios e um turbilhão de asneiras são vomitados amiúde. Freud explica bem esse fenômeno. A civilização, sob o império da lei, é res-ponsável pela inibição da agressividade humana que, como se sabe, é uma expressão narcísica do ego. Quando o narcisismo agressivo rompe a barreira do recalque, afastando-se da lei e de qualquer molde de civili-zação, deságua na barbaridade que estamos assistindo nos dias hodi-ernos. E o país continua dividido entre os beneficiários de toda sorte de privilégios e os desprezados de sempre. Que aqueles apoiem a barbá-rie, até que é justificável. O que não dá para crer e concordar é com es-tes. Sabemos que a intimidação, o terror e o desrespeito às liberdades

civis estão entre os métodos usados pelos tiranos para conquistar e manter o poder. E a intolerância, seja de qualquer espécie – raça, reli-gião, sexual, política ou cor – fere a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se reproduz no reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalie-náveis, constituindo-se no fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Isso tudo que estamos passando nos dá uma tristeza dana-da. Esperamos, no entanto, que há de chegar o dia de esse país ser um bom lugar para nascer e viver harmonicamente.

João Barreto

(Este artigo é dedicado à memória de meu querido amigo João Gomes Cardoso Barreto, falecido no último 9 de maio, num sábado, dia em que quinzenalmente con-versávamos por telefone sobre os meus ar-tigos. Homem de fino trato, que sabia con-quistar as pessoas com a sua simpatia, era um amante de Paris, para onde viajava sempre ao lado da sua querida Olga. Foi embora sem dizer adeus, deixando os seus amigos órfãos da sua generosidade e do seu carinho.)

João Gomes Cardoso Barreto

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