A resistência do MDB ao regime militar em Sergipe

Afonso Nascimento
Professor da UFS

Jorge Carvalho do Nascimento é um intelectual sergipano com graduação em Direito pela UFS e com doutorado em História da Educação pela PUC de São Paulo, com passagem principal pelo Departamento de Educação da UFS. Paralelamente à sua carreira acadêmica, Carvalho do Nascimento teve militância política no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ocupou cargos de secretário do Estado e de Aracaju sempre associado ao grupo do PMDB com ligações com o velho PCB (Jackson Barreto, João Augusto Gama, Benedito Figueiredo etc.). A lista de suas publicações inclui muitos trabalhos no domínio da história da educação, que é a sua principal área de interesse.

A sua última obra não aborda questões educacionais, mas questões da história política sergipana. Trata-se de um livro sobre o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), trabalho que teve como fontes principais depoimentos de homens políticos, de empresários e a cobertura de fatos noticiados por jornais, e que destaca as lutas dessa agremiação que, somada à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), formava o bipartidarismo sergipano do regime militar. Esse é um livro de memórias e, para escrevê-lo (Carvalho do Nascimento, Jorge. Memórias da Resistência. O MDB e a luta contra a ditadura militar em Sergipe. Aracaju: Editora Criação, 2019), o autor entrevistou dezesseis informantes. Infelizmente não foi possível fazer uma revisão bibliográfica da literatura sobre o tema, mas ele cumpre o ritual de citar a incontornável obra de Ibarê Dantas em diversas passagens. Em que pese a ausência de certas exigências chatas dos trabalhos acadêmicos, seu livro traz muitas informações e é uma importante contribuição para a história política estadual.

Eu li o livro como o mais ordinário dos leitores e, admito, a sua leitura foi uma fonte de prazer e, por isso mesmo, quero dizer que recomendo a obra a todos os sergipanos Nesse pequeno texto não é minha intenção fazer uma resenha desse trabalho que também traz em suas páginas muitas fotografias (algumas desnecessárias, por sinal) e muitos quadros e tabelas. Limitar-me-ei a fazer alguns comentários sobre partes do livro que selecionei para esse fim. Avanço. Carvalho do Nascimento fez um bom trabalho ao descrever o processo de estruturação e funcionamento do MDB, as suas lutas internas e externas, bem como suas contradições e suas transformações ao longo de todo o período que vai de 1964 a 1985, quando dá-se a eleição pela via indireta do primeiro presidente civil. Ele nos faz lembrar que o MDB emergiu, como aconteceu em todo o país, como uma “frente” política que reunia agentes políticos que preferiram ficar no partido da oposição consentida. Essa ideia de “frente” também vale para a ARENA.

Dito isso, não me impedirei de fazer uma pequena digressão teórica que não é dirigida ao autor em questão. Eu tenho dificuldade em pensar o MDB e a ARENA como dois partidos políticos. Rigorosamente falando, o MDB estadual e nacional não deveriam ser chamado de “partidos políticos” porque lhes falta a característica principal de um partido que é a possibilidade de chegar ao poder, de governar um município, um estado e um país. Os partidos políticos são máquinas que buscam ganhar eleições e assumir o poder. Se não é assim, parecem ser “partidos de fachada”, formais, de faz-de-conta. Em mantendo essas duas organizações em operação, os militares não transformaram o conjunto da classe política em oposição geral ao regime autoritário, como aconteceria caso todos os senadores, deputados federais e estaduais, vereadores, prefeitos e govenadores ficassem impedidos de ocupar cargos eletivos e mediante nomeação. Se tivessem fechado os parlamentos brasileiros nos três níveis, a tarefa dos militares de dominar teria sido bem mais complicada. Os políticos profissionais agradeceram.

Os militares estabeleceram uma regra do jogo que proibia o MDB de governar qualquer prefeitura, qualquer governadoria estadual. Políticos da ARENA tinham a exclusividade na ocupação desses dois cargos subnacionais – com o que reforçava a crença popular de que os ocupantes de cargos executivos são as pessoas que realmente mandam, tanto na democracia como na ditadura. Quanto à presidência da República, naturalmente ela ficou para os generais mais estrelados.

Isso bem que merece, com a permissão do leitor, um desvio para falar rapidamente sobre o papel da construção civil na política estadual e, especialmente na estruturação e no funcionamento do MDB.  A indústria da construção civil como setor importante da economia brasileira surgiu durante a construção de Brasília no fim dos anos 50 e em começos da década de 60. Quando vem o regime militar, a partir de 1964, esse ramo econômico teve um crescimento extraordinário associado à realização de obras como conjuntos habitacionais, trabalhos de infraestrutura de todo o tipo (pontes, estradas, usinas, campos de futebol, escolas, etc.). Quem não lembra? É nesse contexto que a empresa de construção civil da família Teixeira se insere. Durante algum tempo a empresa familiar se beneficiou de demandas do setor público, para se afastar dele mais adiante – como pude ouvir de Tarcísio Teixeira, um dos seus diretores por mim entrevistado. Por que essa empresa familiar financiaria o MDB sem receber nada em troca? Quais seriam esses valores em moeda corrente em 2020 desses financiamentos e do pagamento de despesas partidárias? Está-se aqui a falar de um trabalho mecenato político? Não possuo informação para dizer o contrário. Se não existe cálculo econômico na atuação dessa empresa familiar, talvez possa  ser dito que o papel de financiadora jogado pela família Teixeira/empresa Norcon do MDB sergipano serviu muito para nobilitar uma família cujo fundador, Oviedo Teixeira, não tinha nascido em berço de ouro. 

Voltando ao que interessa mais de perto, o MDB, como “partido político”, nasceu como uma organização da família Teixeira, proprietária da Norcon. Sem a família Teixeira e sem a Norcon, não haveria o MDB sergipano. Não é por acaso que José Carlos Teixeira, o filho político dessa família de empresários, foi presidente da sigla oposicionista por muito tempo e se elegeu deputado federal em mais de uma ocasião. Todavia, quando é afirmado no livro que a empresa financiou campanhas de diversos candidatos em diversos momentos, não tem como não associar as suas ações à ideia contemporânea de “caixa 2”. Ao dizer isso eu me apresso em dizer que, naquela época, não existia o crime eleitoral de caixa 2 e que isso deve valer para todas as outras empresas da construção civil envolvidas na política em Sergipe até hoje.

Outro ponto que escolhi para comentar no livro de Carvalho do Nascimento é a classificação dos seus militantes do MDB em “esquerdistas, jovens, autênticos e moderados”. Ele está correto ao destacar esses quatro grupos, que correspondem aos comunistas (que usava o MDB como veículo para eleger seus candidatos), aos jovens (liberais e comunistas ou próximos dos comunistas), aos autênticos que seriam agentes políticos que queriam o fim do regime de exceção e a volta da democracia, e aos moderados, que seriam o oposto dos autênticos, que continuavam fazendo política como se nada tivesse acontecido no Brasil. Ainda em relação aos jovens, eles usaram o MDB como porta de entrada para a política profissional, negando, mesmo que parcialmente, uma tese muito conhecida segundo a qual a ditadura militar inibiu a participação da juventude na política. Indo um pouco além, em relação aos jovens da ARENA, isso fica ainda mais evidente.

No livro de Carvalho do Nascimento, ele parece considerar a participação da juventude do MDB, a Ala Jovem, num sentido alargado ou etário, enquanto em minha opinião, a Ala Jovem como instituição teve dois momentos, o de sua fundação em 1974 a 1976 e o de 1976 a 1978. Dizendo de outra forma, a Ala Jovem começa em 1974, primeira fase do setor que acaba com as prisões de 1976, enquanto que a segunda fase desse setor do MDB ressurge no mesmo ano de 1976 sob o comando de Bosco Mendonça (da qual fui secretário-geral e ainda tenho o seu livro de atas, também fazendo viagens para encontros de grupos similares Olinda em Pernambuco e a Campina Grande na Paraíba) e acaba 1978 quando Bosco Mendonça se muda para São Paulo. Posso estar equivocado.

Gostei da parte do livro em que Carvalho do Nascimento discute “a legitimação da ditadura”, na qual diz que o regime militar buscou legitimar-se através de meios como a economia, a construção e distribuição de conjuntos habitacionais para os pobres, da edificação de escolas secundárias, da criação de uma universidade federal em Sergipe e da construção de seu campus universitário na cidade de São Cristóvão. Isso não parece ser concessão do autor ao regime militar. Com efeito, passadas muitas décadas do fim da ditadura militar, é preciso acrescentar à lista do autor, no âmbito universitário estadual, a inclusão do sistema de créditos e a nova regulação da carreira de professor universitário. Essas medidas, no calor da lutas políticas durante o regime autoritário, foram rejeitadas pelas oposições dentro da universidade federal, entretanto eram e são muito melhores que o sistema seriado e o sistema de cátedras.  Vou mais longe. Vale não esquecer a criação do Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural), instrumento de “política social” que permitia aos trabalhadores rurais terem alguma renda e se tornassem eleitores obedientes que, estadualmente, garantiam a hegemonia dos políticos da ARENA.

Discordo autor quando ele afirma que “a ditadura foi vencida”. Penso como muita gente que os militares fizeram uma transição pelo alto, através de pacto entre as elites militares e as elites políticas civis. Saíram por cima da carne seca e não foram forçados a partir como aconteceu em alguns países vizinhos. Foram vencidos pela economia que entrou em crise depois do “milagre econômico”. Os militares de extrema direita, “os duros”, gostariam de ficar mais tempo no poder? Sim. Se isso dependesse dos políticos sergipanos, os militares poderiam ficar muito mais tempo. A política sergipana continuava dominada pelos conservadores arenistas e outros políticos conservadores com o fim do bipartidarismo.

É necessário dizer que o MDB da ditadura militar em Sergipe se transformou em PMDB com a volta do pluripartidarismo ditado pela reforma partidária de 1979, período também trabalhado pelo autor e que, em 2017, na esteira da atuação da Operação Lava-Jato, esse mesmo partido decidiu trocar de nome novamente, passando a chamar-se MDB. Sua trajetória seria então MDB, PMDB e MDB. Enquanto PMDB, esse partido tornou-se, raríssimas exceções à parte, um dos mais representativos símbolos do fisiologismo, do clientelismo e do que há de pior na política brasileira, participando na linha de frente do golpe de Estado de 2016, que depôs a presidente Dilma Rousseff.

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