José Lima Santana – Padre, advogado e professor da UFS
- Fim de ano. Eu estudava na minha primeira escola, perto da minha casa,
pois tínhamos saído do sítio para a casa onde eu moro até hoje. Escola municipal, regida
pela professora Lídia. Dia de receber as provas finais. Alegria para quem passou de ano,
tristeza para quem haveria de repetir. Se bem que alguns alunos não estavam nem aí
para o resultado. No meu caso, não tive motivo para sorrir, mas bem que deveria.
Ocorre que a minha nota final foi 5,0 (cinco). A nota limite para aprovação. Bem.
Passado eu estava. Ao menos, assim deveria ser. Deveria. Mamãe, ciosa, chamou-me às
falas e disse, decepcionada: “Filho meu não passa arrastado. Vou lhe mudar de escola e
você vai repetir o ano”. Oh, desgraça! Tive que suportar os desaforos de um primo, que
teimava em não desasnar, e, então, queria me arrastar para o lado dele.
No ano seguinte, eu fui para a escola da professora Glória (Maria da Glória
Santos), na Praça da Matriz, repetindo o primeiro ano. Bem diferente da escola anterior,
poucos eram os alunos suburbanos como eu, que eram contados nos dedos de uma mão.
A professora Glória, glória da educação primaria dorense, era aposentada da rede
estadual de ensino, na qual ingressara em 1929, pelas mãos do Coronel Chico Porto,
presidente da Assembleia Legislativa, exercendo, em certos dias, a chefia do poder
executivo estadual, em substituição ao presidente do Estado, Manoel Dantas. Aliás, a
nomeação causou uma polêmica danada, nos jornais aracajuanos, porque a mesma não
tinha se submetido ao concurso público aberto para preenchimento de vagas no
magistério estadual. Isso eu já contei no livrinho “Temas de Educação Sergipana”,
publicado no ano passado. Aposentada, a professora Glória voltou a ensinar de forma
particular, como já o fazia antes da nomeação para a rede pública estadual.
As aulas eram dadas na sala de estar. Uma porta e duas janelas pintadas de
verde. A brancura das paredes parecia sempre impecável. Ao lado direito da mesa da
professora, as meninas. Ao lado esquerdo e de costas para as janelas, os meninos, que
eram em maior número. Os bancos rústicos não tinham encosto. Íamos do primeiro ao
terceiro ano. A mestra, sempre louvada por todos os seus alunos, ao menos os que
quiseram alguma coisa da vida estudantil, só tinha o quarto ano primário. Isso, porém,
não lhe tirava os méritos de ser uma exímia professora. E disciplinadora. Sobre a mesa,
a régua e a palmatória, a dona justa. Certa vez, levei uma reguada nas pernas só porque
estava olhando pela janela. Noticiando ao meu pai, ele disse: “Diga que se ela quebrar o
que você tem aí, no meio das pernas, ela me paga”. Ora essa! Recado dado na íntegra.
Ela quase desmaiou. Mas, não disse nada. E jamais repetiu uma reguada. Também, eu
acho que não fiz por merecer. Talvez.
Alunos do tipo barra-pesada, alguns. Os gêmeos Cosme e Damião não eram raça
de gente. Os três filhos de Pedro Carcará, idem. Tortinho, do mesmo modo. Afora esses,
tudo sob controle. Todos tinham que adquirir na escola o Catecismo, que a professora
fazia questão de ensinar. O único aluno que não o possuía era Abrahão, filho de “seu”
Eleotério do Povoado Volta, que era da Igreja Batista. Dispensado, obviamente.
Na época, os livros didáticos eram comprados na loja de Dona Olga de “seu”
Manoel José, na esquina da Praça Marechal Deodoro com a Rua Floriano Peixoto, hoje,
Benjamim Constant, a Rua dos Correios, que, mais para cima, se chamava Rua da
Tapagem, após a esquina com a Rua de Sucupira ou do Melão, hoje, Edelzio Vieira de
Melo, no lado que segue para a Praça da Bandeira, ou, bem antes, Mauricéa, e, hoje,
Joel Nascimento, mas popularmente conhecida como Praça do Jacaré. Ainda escreverei
sobre o bicho.
Uma coisa me intrigava: como era que o sujeito de barbas brancas era, no livro
de História, filho do sujeito de barbas pretas, bem mais novo? Pedro II e Pedro I. Eu
estava repetindo o ano. Fracassei na nota final, no ano anterior, mas sabia quase tudo, para não dizer tudo. Tanto foi que, no segundo semestre, a professora mandou mamãe comprar os livros do segundo ano, embora eu estivesse no primeiro. Todavia, fiz as provas finais do segundo ano, para passar para o mesmo segundo. Um estorvo.
Eu gostava das sabatinas. Diga-se de passagem, que, por causa da feira semanal
da cidade, na segunda-feira não havia aulas em Dores. Isso perdurou até o início da
década de 1980, quando eu, diretor do Colégio Cenecista Regional Francisco Porto,
suspendi as aulas do sábado, passando-as para as segundas-feiras. Depois, todas as
escolas fizeram o mesmo. Voltando às sabatinas, eu dei bolos de palmatória em alguns colegas. Nunca os levei. E nunca entendi direito porque uns colegas tinham que bater nos outros que erravam as perguntas da professora. Na escola anterior tinha ocorrido a mesma situação. No fundo, porém, eu gostava de bater. Malvadeza? Sadismo? Que fossem!
Se a professora era exigente na tomada das lições, maleável era a sobrinha dela,
Donô (Lindonor), que cuidava da casa e ficava na sala de jantar, tecendo rendas na
almofada de bilros. Todo mundo queria dar a lição a Donô. A gente se vingava da
professora quando era tempo de trovoadas. Armando-se por volta das 11 horas, como às vezes acontecia, ela nos liberava mais cedo, pois tinha um medo de morte dos trovões. A meninada pedia a Deus, normalmente entre novembro e o começo de dezembro, que a trovoada viesse no fim da manhã. Tempo ruim mesmo era o das vacinas. Acho que ninguém gostava.
As meninas podiam se servir da privada da professora, afastada da casa, no
fundo do quintal, para as suas necessidades fisiológicas. Os meninos tinham que pedir
para sair e fazer uso do beco, que ficava por trás do muro do quintal da professora e de outras casas. A uns 300 metros da frente da escola, dobrando a esquina de Valdete de Ismael. Não era raro algum menino demorar, pois o muro era baixo e do outro lado, no quintal da professora, e no tempo certo, estavam deliciosas carambolas. Ai de quem ela pegasse com uma carambola, que ela vendia, aos centos, a Deba de Iolanda. Na época da safra das carambolas dava uma vontade danada de urinar.
Naquela escola, eu ficaria até o ano seguinte, ou seja, 1964, no segundo ano,
mas, estudando com os livros do terceiro ano, no segundo semestre, a exemplo do ano anterior. No ano fatídico para a democracia brasileira, a professora Glória, que faleceria em 1979, aos 86 anos, encerrou as atividades docentes. Uma mestra extraordinária. Aliás, a minha tese de doutorado em Educação é dedicada às minhas três professoras primárias: Lídia, Glória e Menininha, em cuja escola eu estudaria, nos anos 1965 e 1966 (terceiro e quarto anos do primário).